Luis Miguel Henriques

 

A arenga naval na historiografia ultramarina portuguesa do século XVI

 

ABSTRACT: This paper deals with the harangue used in a naval context, as presented in 16th-century Portuguese overseas historical writing. The first part of the article analyses the way in which such speeches can be integrated by means of settings in the narrative discourse. The second part identifies in the harangues different rhetorical topoi and their functions. In short, the intention of this work is to characterize the standard harangue used by captains and Portuguese governors before a naval battle in the Indian Ocean.

Keywords: harangue; settings; rhetorical topoi; Portuguese history writing; 16th Century; naval battle.

 

RESUMO: O presente artigo aborda a importância da arenga militar pronunciada em contexto naval na historiografia ultramarina portuguesa do século XVI. Analisa, em primeiro lugar, o modo como estes discursos se integram através dos engarces no fio narrativo, dedicando-se, depois, à identificação dos diferentes topoi retóricos e respectivas funções. Em suma, com este artigo, pretende-se reconstituir a arenga-tipo proclamada pelos capitães e governadores portugueses, antes de uma batalha naval, no Oceano Índico.

Palavras-chave: arenga; engarces; topoi retóricos; historiografia portuguesa; século XVI; batalha naval.

Fecha de recepción: 11 Julio de de 2009.

Fecha de aceptación: 15 de Septiembre de 2009.

 

 

1. Contextualização temática

Uma vez que neste ano de 2009 se comemoram os 500 anos daquela que foi a mais emblemática batalha naval empreendida pela marinha de guerra portuguesa na circunstância a batalha naval de Diu decidimos elaborar o presente estudo sobre a arenga militar em cenário naval, não naquela batalha, mas em todas as que seleccionámos a partir da chamada historiografia ultramarina quinhentista, nas obras de João de Barros, Castanheda, Gaspar Correia e Diogo do Couto. Nesse sentido, este artigo tem por objectivo principal analisar, em primeiro plano, o modo como estes discursos se integram e harmonizam com a narração dos factos, particularizando o papel que os engarces desempenham na consecução dessa dita harmonia.[1] Em seguida, identificaremos e interpretaremos a presença dos mais relevantes topoi retóricos no interior das arengas, estabelecendo a sua relação com o contexto histórico-cultural envolvente. Procuramos, pois, apresentar aquela que era a arenga-tipo pronunciada pelos comandantes portugueses nos momentos que antecediam uma batalha naval no Oceano Índico, presentes na historiografia portuguesa ultramarina do século XVI. Nessa batalha naval do dia 3 de Fevereiro de 1509, como nas mais de 300 outras batalhas que os portugueses travaram ao longo do século XVI, vários factores contribuíram para a vitória. Aqui e agora cumpre apenas falar de um: o factor humano. Pela leitura das crónicas, vemos que a predisposição dos portugueses para a guerra associada a um comando assertivo era o verdadeiro fiel da balança. Quantas vezes, punhados de homens, em extrema dificuldade e aperto, graças à capacidade retórica do capitão, inverteram um destino traçado. Nesse sentido, a historiografia ultramarina do século XVI é pródiga na inclusão de arengas militares, intercalando-as amiúde no decurso do relato narrativo, mormente nos momentos que antecedem confrontos navais decisivos. Naturalmente que a presença da arenga na historiografia nos leva a uma questão, muito debatida entre especialistas, sobre a realidade ou a invenção da arenga historiográfica. Não pretendemos aqui dissecar o problema ou aduzir interpretações, mas tão-só dar conta do seu estado actual. Hansen (1993) apresenta a arenga como uma criação literária posterior, fruto do labor do historiador, fundamentando a sua decisão no facto de a arenga real nunca poder ir além de algumas poucas exortações para que as mesmas fossem ouvidas pelas tropas. Pritchett (1994 e 2002) ataca esta posição, defendendo a historicidade das arengas, assumindo-as como um testemunho mais ou menos fiel daquilo que efectivamente fora declarado, dependendo do grau de proximidade do historiador face a esse mesmo discurso, opondo-se, pois, a que as arengas sejam discursos completamente ficcionados, admitindo, contudo, a sua transformação em modelo literário. Quanto a nós, pensamos que os historiadores ao introduzirem estas arengas em momentos cruciais, procuraram explicar ao narratário-leitor, como um grupo reduzido de homens pode vencer, num momento decisivo, uma armada inimiga com um número muito superior de efectivos. A arenga, a capacidade retórica de um capitão para animar as suas tropas, assume-se, pois, como um elemento equilibrador, dentro de um quadro de coerência, sem a qual a vitória seria entendida como pouco credível e certamente inverosímil. Paralelamente, e como veremos no penúltimo ponto deste artigo, a inclusão da arenga na narração dos feitos obedece, também, a uma estratégia retórica por parte do historiador, uma vez que ele próprio a aproveita para veicular determinadas orientações ideológicas.

 

2.    A Historiografia quinhentista

Quando pouco nos referíamos que os historiadores de quinhentos incluíram a arenga no decurso da narração, temos de entender esse facto num quadro cultural mais amplo. Claramente, essa valorização da retórica compreende-se à luz dos ideais humanistas que então enformavam a historiografia quinhentista. O que de novo relativamente ao período medieval, é que para além do seu carácter mimético de preservar um passado heróico, a obra historiográfica é agora, mais do que nunca, como afirma Iglesias Zoido (2008: 20), una composición literaria elevada y erudita, em que a maneira de contar, o estilo são sobrevalorizados. Tanto assim é, que o próprio João de Barros considera a História, à maneira de Tito Lívio, um ramo da Retórica: tem tanto poder a força da eloquência, que mais doce, e acepta he na orelha, e no animo huma fabula composta com decoro, que lhe convem, que huma verdade sem ordem, e sem ornato, que he a forma natural della.[2] Esta conexão entre a História e a Retórica levada a cabo pelos historiadores quinhentistas tem um propósito claro: tendo ao seu redor uma panóplia vasta de acontecimentos extraordinários, que iam desde as navegações para zonas do globo até pouco desconhecidas, até feitos de armas inauditos (por exemplo a batalha naval de Diu), por meio de um estilo elevado, portanto fazendo uso da Retórica, poderiam imortalizar na História, a grandiosidade da gesta nacional. Enfim, trata-se do tópico de numa mão a espada e noutra a pena. Com esta conjugação de esforços, o objectivo a atingir seria o de mostrar ao mundo que os feitos dos portugueses superaram tudo o que gregos e latinos haviam realizado e imortalizado. Ao lermos a historiografia ultramarina, este tópico da superação como o denominaram alguns estudiosos surge a cada passo. Para todos os efeitos, o uso e a disseminação da arenga pela historiografia, quer como processo de emulação, quer como processo retórico serve indubitavelmente todos estes objectivos.

Por outro lado, os cronistas portugueses de quinhentos viram também na História, uma vocação moralista, como escreve, a esse propósito, João de Barros, no prólogo da Década I da Ásia:

 

Fica daqui a cada huũ de nós hũa natural e justa obrigaçam, que assy devemos ser diligentes e solícitos em guardar em futuro nossas obras pera com ellas aproveitarmos em bom exemplo […]. E vendo eu que nesta diligencia dencomendar as cousas a custódia das letras (cõservadoras de todalas obras) a naçam Portugues é tam descuydada de sy, quam prompta e diligente em os feitos que lhe competem por milicia, e que mais se preza de fazer que dizer, quis nesta parte usar ante do ofício de estrangeiro, que da condiçam de natural.

 

Neste pequeno excerto de Barros, podemos compreender que a História é entendida como um conceito moral e pragmático, espelho de virtudes para as gerações futuras. A «custódia das letras», isto é, a História, está incumbida de memorar os bons feitos passados, a fim de servirem de exemplo e de imitação, de acordo com a tradição clássica. Esta função pragmática da História implica, por outro lado, uma obrigação: contar a verdade. Contudo, a verdade, em alguns casos, entra em rota de colisão com o carácter oficial tanto das crónicas como do cronista, pois a história do Renascimento está estreitamente dependente dos interesses sociais e políticos dominantes, neste caso do Estado, como declara Le Goff (1984: 226). O caso de Barros é revelador dessa dificuldade: embora revele, no prólogo da Década I, seguir um projecto de imparcialidade, e de revelar a verdade, no prólogo da Década III, declara: a primeira e mais principal parte da historia e é a verdade della, e por em algũas cousas nam ha de ser tanta que se diga por ella o dito da muyta justiça que fica em crueldade, principalmte nas cousas que tratam da infamia dalguem ainda que verdade sejam. Donde se pode concluir que do conceito de verdade devem ser omissas as más acções. Esta aparente contradição é absolvida por Serrão (1972: 223) afirmado que Barros, na esteira de Tito Lívio, queria apresentar a História pátria como um exemplo de moral, escrevendo em «tom heróico» de acordo com a expectativa da recepção das classes sociais dominantes. Em todo o caso sabemos que outros cronistas, porque não omitiram alguns factos ou minguaram nos elogios, sofreram pressões, de tal maneira que algumas obras levaram sumiço, enquanto outras se mantiveram manuscritas até ao século XIX, o caso das Lendas da Índia de Gaspar Correia.

Finalmente, uma outra linha de orientação, a historiografia de quinhentos é atravessada por uma indiscutível vibração de exaltação patriótica. Esta exaltação épica dos feitos torna a História próxima da epopeia. A necessidade da epopeia vinha desde o século anterior, e os historiadores de quinhentos procuraram estabelecer um paralelismo entre os heróis da Antiguidade e os portugueses. Neste sentido, a epopeia veio a lume com Os Lusíadas, 1572, de Luís de Camões.

aqui aludimos ao facto de vários cronistas se inquietarem por os portugueses cuidarem muito em fazer e pouco em registar. Contudo, Valdez dos Santos (2003: 157) declara que Portugal, durante o Renascimento, procurou anunciar a sua História ao mundo, pelo que terão sido produzidas entre 1300 e 1400 obras, a maioria de cariz militar-marítimo, embora nem todas tenham chegado até nós. Estas obras terão sido, maioritariamente, escritas em vernáculo e algumas delas foram objecto de traduções em várias línguas. Por outro lado, portugueses no estrangeiro, como Damião de Góis, usando o Latim, anunciaram à Europa os feitos da Ásia.

 

3.    Corpus

Para o estudo retórico das arengas navais, de entre a vasta produção historiográfica do século XVI, focámo-nos exclusivamente nas extensas obras dos, nas palavras de Veríssimo Serrão (1973: 147), autores ultramarinos do oriente. De facto, o estado português da Índia, mais do que possessões territoriais, assentava a sua manutenção no controlo de rotas comerciais marítimas, acerrimamente defendidas por uma poderosa e dispersa marinha de guerra, que despertava o sentimento de grandeza de um pequeno povo. Assim, nas obras destes cronistas, praticamente todas as páginas estão ocupadas com os feitos do oriente que satisfazem amplamente a sua curiosidade histórica. Na verdade, o Portugal do lado de passa ali quase despercebido, por vezes apenas referido, quando as decisões tomadas aqui, tinham ali implicações. Vejamos agora, com maior proximidade, alguns elementos biográficos sobre estes historiadores.

De acordo com Serrão (1972) João de Barros (1496-1570), embora nunca tenha estado ou viajado até à Índia, no desempenho das suas funções como feitor da Casa da Índia, teve a oportunidade de consultar todos os documentos daquele arquivo, mas também de escutar o relato dos marinheiros que continuamente ali aportavam, pelo que recebia em primeira-mão muito do que se passava no Índico. Do seu vasto edifício histórico, constavam três grandes capítulos: Conquista, (subdividida em Europa, África, Ásia e Vera Cruz), Navegação e Comércio, tendo redigido anteriormente uma Geografia. Desta obra gigantesca, hoje apenas conhecemos as quatro primeiras Décadas da Ásia. O título e a ideologia demonstram a clara influência de Tito Lívio, pois procurava fazer da história uma lição moral para as futuras gerações, ainda que isso implicasse omitir alguns actos menos dignos. A Ásia é pois uma espécie de epopeia dos sucessos do oriente, e que se enquadra no ambiente geral da euforia da expansão que ainda se vivia nos meados da centúria. As primeiras três décadas, saíram respectivamente em 1552, 1553 e 1563. A última foi publicada em 1615. Cobrem a presença lusa no oriente entre 1497 e 1539. Como não esteve no oriente, a sua obra perde na cor local, mas ganha nas notas sobre geografia, batalhas e feitos militares e nas alocuções solenes das personagens. Como afirma Serrão (1980:188), Barros sentia que a verdadeira história devia ser narrada num quadro de beleza literária, para dar ao assunto o tom heróico da epopeia. Para muitos é considerado o “Tito Lívio português”.

Fernão Lopes de Castanheda (1500-1559) fez apenas os estudos menores e em 1528 partiu para a Índia. colheu elementos para a edificação da sua História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, que viria a terminar na pátria em 1539. Em 1547, exerce funções de bedel e guarda-mor da livraria da Universidade de Coimbra. De acordo com Serrão (1972: 229): a obra de Castanheda é a mais completa fonte sobre os primeiros cinquenta anos da dominação portuguesa na Índia e o seu autor um dos maiores do nosso século XVI. A sua erudição terá provindo da escola da vida, particularmente dos contactos que estabeleceu no oriente com muitos dos protagonistas, mas também da convivência com os humanistas da Universidade de Coimbra e do Colégio das Artes. Escrevendo na primeira metade do século XVI, sente ainda vibrar o clima épico que se vive, mostra o orgulho de ser português, e no prólogo do Livro III declara que, embora não possuindo o engenho de Homero e não chegar à eloquência de Tito Lívio, sente que as façanhas dos lusitanos na Índia se elevam acima das que aqueles autores clássicos escreveram. Muitas alusões clássicas, aliás, irrompem do seu arrazoado histórico, todavia a sua prosa não se compara à erudição da de Barros. A História completa contaria 10 livros, mas apenas 8 foram publicados. O Livro I foi publicado em 1551, enquanto os dois livros seguintes foram publicados nos dois anos subsequentes. Com razoável periodicidade, até 1561 são publicados os Livros IV-VIII. Os Livros IX e X não receberam permissão de impressão por influência de certas famílias pois não reconheciam ali o mérito de que se julgavam ser merecedoras. Uma última nota para o facto de a obra de Castanheda ter alcançado rapidamente uma enorme popularidade na Europa, pois logo em 1553 foi publicada em Paris uma tradução francesa do seu primeiro livro, repetida no ano seguinte. Teve a História também traduções espanhola (1554), italiana (1577) e inglesa (1582).

Gaspar Correia (1492-1563) terá partido para a Índia em 1512, onde desempenhou o cargo de secretário do Vice-Rei Afonso de Albuquerque, que lhe terá permitido contactar com altas figuras do estado. Tal ofício conferiu-lhe a possibilidade de reunir imensa informação para a sua obra, Lendas da Índia. Terá iniciado a sua redacção no Outono da vida, embora se tenha servido dos informes que fora reunindo ao longo da vida. As Lendas são uma narrativa objectiva dos acontecimentos da primeira metade do século XVI. Embora não tenha adquirido erudição, compensou esse défice com os saberes de homem experiente. Assumindo-se não como cronista régio, mas sim como narrador dos feitos ultramarinos, critica aqueles que escrevem longe dos factos, por documentos ou por testemunho de terceiros como funcionários régios, numa clara crítica a Damião de Góis e a João de Barros. Vira crescer um império, que agora na segunda metade do século ameaçava os primeiros sinais de decadência. Defensor da objectividade, não calou a sua dor, escrevendo os bons, mas também os maus feitos, afastando-se deste modo do conceito de Barros. A obra, composta por quatro volumes, cujos manuscritos sofreram algumas atribulações e pressões, conheceu impressão no século XIX, entre 1858 e 1866.

Por fim, Diogo do Couto, o continuador da Ásia iniciada por João de Barros. Reatou a narração dos feitos a partir de 1526, e continua-a até 1600. Nasceu em 1542, estudou Latim, Retórica e Filosofia, cujos reflexos marcam a sua obra. uma profusão de leituras de autores antigos e modernos. Dos clássicos, destacam-se Homero, Virgílio, Galeno, Ptolomeu, Arriano, Quinto Cúrcio, Plínio, César, Séneca e Tito Lívio. Refere espanhóis como Santo Isidro de Sevilha e González de Clavijo. Em 1559, seguindo a carreira das armas, parte para o oriente, onde falece em 1616. Em vida, Couto conseguiu publicar as Décadas IV, V, VI, VII, respectivamente em 1602, 1612, 1614 e 1616, que cobrem os acontecimentos entre 1526 e 1564. As quatro décadas seguintes, deixou-as manuscritas, sofrendo sortes diferentes: a VIII e a IX tiveram de ser refundidas pelo próprio; a X manteve-se inédita até 1777; a XI desapareceu conhecendo-se hoje um epítome e a XII ficou incompleta. Terá começado a escrever as suas Décadas por volta de 1591, quando assumiu a dupla função de cronista e guarda-mor da Torre do Tombo de Goa. Associando, como desejava, o seu nome ao de Barros na redacção desta monumental obra, existem contudo diferenças entre ambos: enquanto Barros exala a euforia da expansão, Couto observa, com angústia, a decadência do império, provocada pela incúria da administração e pela ameaça da Holanda aos interesses lusos no oriente. Se na sua obra louva os feitos heróicos de alguns, não deixa de culpar os vice-reis e fidalgos que não foram dignos da memória dos antepassados, denunciando os males do império. Seguiu sempre a via da verdade e da objectividade.

Assim, após o levantamento dos discursos em todas estas obras, contabilizámos cerca de quatro dezenas e meia de arengas navais, sendo Castanheda o mais representativo com 52% dos discursos, ao passo que no outro extremo, Barros contribui com 2 discursos. Cremos que para a expressão de Castanheda contribuem dois factores: desde logo, porque a base de recrutamento em Castanheda é superior à dos restantes, 8 livros integrais; em segundo lugar, a proximidade temporal com que escreve e o contacto com testemunhos de protagonistas, sobretudo fidalgos e capitães, que a sua condição social facilitava, como afirma no prólogo do Livro III, permitiram-lhe elaborar estas arengas, num clima ainda de exaltação patriótica. Outro facto que sobressai da análise dos dados, é que, ao contrário da historiografia latina cujos autores preferem o estilo indirecto,[3] no presente corpus, cerca de 70% das arengas estão em estilo directo. Pensamos que para essa cifra contribuiu o advento do Humanismo, que ao contrário do que seria de esperar, levou a que um grupo de autores prescindisse de escrever em Latim, para escrever exclusivamente em vernáculo. Poetas e historiadores usaram o Português como única língua pois admitiram que a sua língua estava apta suficientemente para relatar os feitos da história pátria. Ora, quer em termos sintácticos, quer em termos de impacto emotivo sobre o leitor, o estilo directo em Português adquire maior vivacidade. Acresce que, um discurso em estilo directo proporciona ao narrador veicular uma determinada ideologia sem que o mesmo fique demasiadamente comprometido com a mesma.

Para encerrarmos este ponto, falta-nos tratar de uma questão de importância crucial: identificar o tipo ou tipos de arengas que são privilegiados no corpus em análise. Dada a sua heterogeneidade compositiva, a crítica especializada ainda não reuniu consenso em torno de uma tipologia estável de arengas para a historiografia clássica, tal como afirma Iglesias Zoido (2008a: 38) no ha de extrañar que la crítica haya planteado diferentes posibilidades de clasificasión tipológica. Este mesmo estudioso, na continuação daquela sua investigação, apresenta-nos as mais significativas propostas de classificação tipológica que ao largo do século XX foram surgindo para a historiografia clássica. Assim Usher (1969) toma como critério, a moral das tropas, para inventariar três tipos de arengas. Claro que diante de diferentes estados anímicos, o general há-de certamente também pronunciar arengas com conteúdos diversos, teoria que não reúne consenso por parte dos historiadores. A proposta de Hansen (1993), mais complexa, uma vez que cruza vários vectores, como o tipo de emissor, situação do receptor, meio de transmissão da exortação e o contexto físico em que é pronunciada, apresenta quatro diferentes tipos de arengas clássicas. Apesar de mais completo, como aponta Iglesias Zoido (2008a: 39) não consegue compreender nem explicar a multiplicidade de discursos exortativos.

Postas as coisas nestes termos, temos de analisar cada arenga na sua individualidade, realizar un estudio más profundo de las características y contexto de cada una de las arengas insertas en las obras historiográficas para determinar con claridad su tipología, lo que nos muestra un amplio abanico de posibilidades desde el punto de vista pragmático, atendiendo al momento en que se pronuncia la arenga.[4] Assim sendo, temos de considerar as arengas pronunciadas antes, durante e depois da batalha e, dependendo dessa questão temporal, também os discursos variarão entre maior os menor extensão e conteúdo. Um discurso prévio à batalha, apresenta certamente uma componente didáctica mais ampla do que a componente exortativa, ao invés de uma arenga pronunciada no decurso da batalha, que terá de ser breve e fortemente exortativa. Uma arenga pronunciada após uma batalha terá um conteúdo epidíctico, louvor aos vencedores e consolação aos vencidos.

Partindo, pois, destas linhas orientadoras, atendendo sobretudo à individualidade do momento e do contexto em que cada uma das arengas é pronunciada, vamos, agora, confrontá-las com o corpus seleccionado de arengas navais na historiografia portuguesa quinhentista, a fim de identificarmos o tipo ou tipos de arengas mais frequentes. Observando pois o momento em que são pronunciadas, chamemos-lhe o critério cronológico, na sua larga maioria, as arengas são pronunciadas pelo governador ou capitão-mor da armada antes de dar batalha, por vezes um ou mais dias antes da mesma e por arrastamento, numa coordenada diferente daquela em que se vai desenvolver o confronto, pois a imprevisibilidade do inimigo, das correntes marítimas e dos ventos poderiam levar à dispersão da armada e à inviabilidade da arenga. Quanto ao interlocutor, a arenga era geralmente pronunciada na nau principal pelo capitão-mor diante dos capitães das restantes embarcações e de outras pessoas influentes, que por sua vez, deduzimos nós, reproduziriam na sua embarcação, o discurso ouvido. Relativamente à finalidade da arenga, ela visa sobretudo persuadir os oficiais a enfrentarem o inimigo sem hesitações. Pelo exposto, daqui decorre que estas arengas desenvolvem amplamente a componente explicativa, com tópoi retóricos distintos, como adiante veremos, que vão desde a explicação da estratégia até à vantagem de se efectuar aquele embate, e, onde, a componente exortativa se apresenta proporcionalmente reduzida. Esta é arenga mais comum. No corpus, podemos também encontrar uma arenga breve pronunciada durante uma batalha naval, dois casos de epipólesis, que no ponto seguinte exploraremos, bem como algumas arengas em cuja finalidade não é persuadir, mas sim dissuadir a temeridade de alguns de perigarem a vida de todos.

Como assinala Iglesias Zoido (2008a: 40), para a formulação de uma tipologia de arengas, além de se terem em linha de conta critérios literários, retóricos e contextuais, são de valor imprescindível os engarces narrativos, pois oferecem-nos informações determinantes para a determinação do tipo de discurso com estamos a lidar. Ora, é precisamente isso que vamos ver de seguida.

 

4.    Os engarces

É do conhecimento dos especialistas em historiografia que se deve a Tucídides o primeiro capítulo metodológico em que os feitos (érga) e as palavras (lógoi) surgem num plano de igualdade. Tal equidade determina que a partir daí os discursos não se entendam como subordinados à narração, mas que interagem com a mesma. Ora, é precisamente o engarce o processo empregado pelo historiador para a integração plena das duas componentes.[5]

Entende-se por engarce (setting) as palavras e as frases que Tucídides empregara para introduzir os discursos no fio da narrativa histórica. São uma espécie de cal, que em posição prévia e posterior aos discursos tanto em estilo directo (oratio recta) como em estilo indirecto (oratio obliqua), ligam naturalmente narração e discursos. Apesar de, como veremos, os engarces se revelarem de importância crucial, estas fórmulas de abertura e encerramento dos discursos ainda não obtiveram a atenção devida por parte dos estudiosos. Efectivamente, se nas obras de Homero e Tucídides os engarces foram estudados, embora numa perspectiva de determinar a correspondência com aquilo que realmente fora pronunciado, a verdade é que é crucial alargar o âmbito de estudo aos engarces de outras obras historiográficas e de outras épocas, daí a pertinência de estendermos essa análise à historiografia portuguesa ultramarina. pretendemos identificar outras funções que, para além da questão do realmente dito, estas fórmulas desempenham na inserção dos discursos na narrativa.

Os engarces não sendo, pois, nem narração, nem discurso, ajudam a ligação entre os dois. Advertem-nos de que a narração fica momentaneamente suspensa pela introdução de um discurso, findo o qual, se retoma novamente a narrativa. Tendo em conta a essência deste artigo, consideramos aqui, unicamente, os engarces da arenga, os quais revelam uma maior homogeneidade do que, por exemplo, os homónimos dos discursos deliberativos, devido aos diferentes contextos em que estes podem ser proclamados. Para além de outras funções, os engarces das arengas, podem possibilitar-nos, antecipadamente, informes sobre a natureza do discurso, como veremos adiante.

Descendo agora ao particular, e para a correcta aferição de todas as suas possibilidades, podemos identificar três níveis de engarces. O primeiro nível diz respeito àquelas palavras que tocam directamente no discurso. O segundo nível é de maior amplitude, pois abrange a frase de abertura e de encerramento do discurso. Finalmente, o terceiro nível, de dimensão variável, uma vez que pode atingir a dimensão de um capítulo, se justifica mediante o discurso que introduz, abordando informações prévias sobre o próprio discurso e sobre as suas consequências. Embora possam coexistir em simultâneo, a determinação do respectivo nível depende do grau de proximidade com o discurso.

 

a)                  O primeiro nível de engarces compreende aquelas palavras que directamente contactam com o discurso. Tais palavras são de importância crucial, pois revelam a forma precisa como o historiador se dirige ao elemento discursivo, cuja presença na trama narrativa é da sua responsabilidade. É por isso que elas mesmas demonstram o posicionamento do autor face àquilo que, por um lado, terá sido efectivamente pronunciado pelo orador, ou, pelo contrário, poderá ser o resultado do labor retórico do seu autor, ou seja, são importantes para se avaliar a questão da autenticidade do discurso. Os mesmos termos podem também facultar-nos informações prévias sobre algumas características do próprio discurso. Precisando o que afirmamos, de um modo geral, no corpus considerado, os engarces de primeiro nível pré-discursivos, indiferentemente de precederem discursos em estilo directo ou em estilo indirecto, são maioritariamente preenchidos por verba dicendi, especificamente o verbo dizer, conjugado na 3.ª pessoa do pretérito perfeito do Indicativo disse (Castanheda, História, Lv. II, Cp. XXV), embora o gerúndio dizendo (Castanheda, História, Lv. II, Cp. LIV), ocorra ocasionalmente. Casos em que, entre aquela forma verbal e o início do discurso, se encontra de permeio o deíctico pessoal complemento indirecto lhe/lhes: disse-lhes (sendo a posição inversa também representativa «lhes disse»).


 

O deíctico possessivo «seus» ocorre também naquela posição, sendo o seu referente todos os elementos da armada ou apenas os principais. Do exposto, podemos apresentar a fórmula mais glosada pelos historiadores: verbo dizer + deíctico / deíctico + verbo dizer. Em Diogo do Couto, encontramos a especificação do alvo do discurso disse aos seus capitães (Couto, Década VI, Lv. IX, Cp. III), assim como em Castanheda falou a toda a gente (Castanheda, História, Lv. I, Cp. LXVIII). Quando se actualiza a fórmula atrás enunciada, que é a mais frequente, deparamo-nos com um discurso de média/longa dimensão, cuja componente estratégica é mais extensa do que a componente exortativa, ocupando esta, o fim do discurso.

 

Neste nível de engarces, a presença de outras palavras em contacto com o discurso, transportam também uma diferente força elocutória. Isso sucede quando o mesmo verbo dizer tem como adjacentes os modificadores com grande cólera (Couto, Década VI, Lv. III, Cp. III) ou disse alto. O mesmo se verifica, quando o mesmo verbo dizer se encontra precedido de verbos, como animar e esforçar, como por exemplo esforçou dizendo (Castanheda, História, Lv. III, Cp. CLI). Uma variante deste sintagma apresenta como núcleo, não o verbo dizer, mas o verbo animar, resultando em animou para a peleja (Castanheda, História, Lv. III, Cp. CV). Significativa é a forma verbal onomatopaica bradou (Couto, Década VII, Lv. I, Cp. V), com uma presença no corpus discursivo. Como se pode depreender, trata-se de formas verbais que emprestam ao engarce um aspecto exortativo, e, que, por antecipação, nos faz entrever um discurso breve, em que a componente parenética assume um papel de destaque. Com muita nitidez, nestas arengas, os topoi dos âmbitos do do honestum / dignum assumem uma grande relevância, o que demonstra claramente uma relação estreita entre o tipo de engarce seleccionado e o discurso produzido.

 

Se considerarmos agora a(s) palavra(s) que estão em contexto pós- discursivo e que se referem ao próprio discurso, verificamos que, nas poucas vezes em que isso sucede, e independentemente dos verba dicendi anteriormente seleccionados no engarce inicial, encontramos também um deíctico, isto, que podemos classificar de “neutro”. Este deíctico surge integrado em sintagmas como E dizendo isto (Castanheda, História, Lv. II, Cp. XXVI) ou Isto assentado (Castanheda, História, Lv. V, Cp. XXXV) o qual revela um certo distanciamento do autor face àquilo que efectivamente terá sido pronunciado. Esta ideia transparece também do engarce: e assi outras cousas (Castanheda, História, Lv. III, Cp. CVI) apenso a uma arenga em estilo indirecto, em que o historiador nos transmite apenas as ideias que considera fundamentais, optando por resumir as restantes neste engarce. Pensamos, pois que estas fórmulas são equivalentes àquela que Iglesias Zoido (2006: 6) assinala nos discursos de Tucídides, na circunstância (toiauta). Se a estes engarces finais, somarmos os engarces iniciais, muito repetidos e de significação muito geral, preenchidos pelo verbo dizer, parece-nos que o emprego de tais palavras e não de outras mais precisas, denota um certo distanciamento entre aquilo que efectivamente terá sido pronunciado pelos oradores e o que nos comunicam os cronistas. Face ao exposto, poderemos afirmar, com uma certa segurança, que os autores tão-só nos transmitiram aquelas coisas que julgaram convenientemente ter sido pronunciados naqueles momentos, sendo, portanto, os discursos fruto de elaboração retórica posterior. Esta conclusão é corroborada pelo facto de uma mesma arenga apresentar versões diferentes em historiadores distintos. Assim, antes da batalha naval de Diu, a fim de adestrar previamente os seus homens, Francisco de Almeida decida atacar a cidade de Dabul. Isso mesmo comunica aos principais, por meio de uma arenga, cujas extensão e elaboração retórico- linguística são dissemelhantes em Castanheda (História, Lv. II, Cp. XCVI) e em João de Barros (Ásia, Década II, LV. III, Cp. III) embora possa haver uma partilha de tópoi retóricos. Em face do exposto, parece-nos pois que os discursos inseridos nos relatos históricos, parecem-nos mais fruto da reelaboração e do talento retórico dos diversos autores.

 

b)            O segundo nível de engarces é mais extenso do que o anterior visto que o escopo recai sobre as frases totais anteriores e posteriores ao discurso. Na circunstância, a maior extensão corresponde também uma maior heterogeneidade. Em todo o caso, a frase prévia assume maior preponderância, uma vez que pode implicar o desenvolvimento ideológico e organizativo do discurso, enquanto a frase final apresenta maior linearidade ao nível do conteúdo. Vejamos, então, algumas das funções desempenhadas por este nível de engarces.

 

Delimitação do âmbito oratório do discurso. Uma função deste segundo nível é a de nos transmitir a identificação e delimitação do receptor do discurso. Contudo, antes de prosseguirmos, queremos aqui trazer à colação umas pequenas considerações sobre a organização hierárquica de uma armada. Recordemos que neste século XVI, a guerra passou a contar com uma componente pirobalística, cujas respectivas armas de fogo passaram a integrar a estrutura dos navios. As naus e os galeões portugueses tornaram- se autênticas fortalezas navais, que poderiam albergar centenas de homens. Uns estavam ligados à marinhagem, enquanto outros eram a força militar. De modo que uma armada, compreendendo várias e distintas embarcações, podia atingir milhares de homens. Quanto à hierarquia de comando, de certa forma, reproduzia o que se passava em terra. Assim, cada armada tinha à cabeça um responsável máximo, que era o capitão-mor, ao qual obedeciam os restantes homens, pois tinha poder para mandar, julgar e castigar, até pena capital (Oliveira, 1555: II, 12). Por sua vez, cada embarcação tinha respectivamente um capitão. Regressando à delimitação do horizonte discursivo, na generalidade das arengas tanto em estilo directo como em estilo indirecto, o destinatário colectivo das mesmas vem claramente identificado, o que corresponde, certamente a um esforço de exactidão por parte dos historiadores. Assim, o capitão-mor da armada chama ou ajunta na sua nau os capitães das restantes embarcações, bem como fidalgos e pessoa de igualha importância, ou seja o «conselho». Trata-se pois de uma assembleia restrita, composta por algumas dezenas de pessoas, a quem o capitão-mor costuma arengar, depreendendo-se que depois, por sua vez, cada um destes oficiais reproduza as palavras do capitão-mor diante dos seus subalternos. Em contexto naval, as arengas dirigidas a milhares de homens não se verificam, porque a logística as torna inviáveis. no entanto um caso interessante, em que o Vice-Rei da Índia, simultaneamente capitão-mor, manda que o seu discurso escrito seja lido em todas as embarcações em presença de toda a gente, prometendo após a vitória na batalha de Diu, benesses e honras para todos. [6]

 

De modo que o exemplo seguinte é um caso concludente e recorrente do que temos estado a afirmar: E o Governador pôs sua bandeyra na quadra, a que logo vierão os capitães, e fidalgos e gente d’armada, e o Governador na tolda.[7] Para além da assembleia-alvo do discurso, este nível de engarce informa-nos do meio comunicação visual usado pelo capitão-mor para a convocação do conselho, que passava pela colocação de uma bandeira na quadra da nau, local certamente visível das restantes embarcações. Casos em que o capitão envia também um bergantim em direcção às naus com a missão de fazer a mesma convocatória. Reunidos os capitães na nau do capitão-mor, este arengava aos seus homens em locais precisos da embarcação, que poderiam ser a tolda, como no exemplo anterior, ou o chapitéu. Naturalmente, que o orador ocuparia um lugar à frente de todos, de forma que o pudessem bem ouvir, como se observa no engarce de Correia: Antre todos assentado na tolda, o Visorey a todos lhe fez esta fala.[8]

 

Identificação e caracterização do orador. Sempre que algum orador pronuncia uma arenga, é claramente identificado e nomeado pelos historiadores, esforço que o historiador faz para manter o nível de precisão histórica. De entre os oradores, destacam-se, por uma ordem crescente de frequência, militares que da turba anónima praticam actos de heroísmo (deixando, deste modo de ser anónimos, porque o historiador, além de nos facultar o nome, diz-nos quem era o seu superior[9], e por vezes notas sobre a sua ascendência), membros do clero que exortam à guerra contra os inimigos da fé, capitães de navios, e, naturalmente, capitães-mores, cargo, por vezes, concomitantemente desempenhado pelo governador/vice-rei. Face ao exposto, naturalmente que o elemento que na historiografia ultramarina portuguesa, com maior frequência arenga à marinhagem é o capitão da armada. Estes capitães revelaram qualidades fundamentais para dirigirem algumas centenas ou milhares de homens. No âmbito específico da temática que aqui nos ocupamos, é evidente que um dos requisitos fundamentais para o cabal desempenho do cargo de capitão de armada ou de exército seria o domínio da arte retórica para arengar às tropas. Não é por acaso que uma das primeiras obras da literatura de re militari, o tratado de Onassandro, Στρατηγικός, escrito por volta do ano 58, que aborda as qualidades que um general devia reunir, segundo a tradição grega, identifica a capacidade de falar em público como uma das fundamentais, a que se juntam, entre outras, a prudência, a sobriedade, a austeridade, a inteligência.[10] É que do domínio da primeira poderão advir benefícios. Num outro importante tratado de ciência militar, Epitoma rei militaris, escrito por Vegécio, no século IV, este tratadista renova no capítulo IX do livro 3 que o general deve animar os soldados desmoralizados por meio de uma arenga, donde se depreende que deve ter conhecimentos sobre retórica. No mesmo capítulo declara que o mesmo general deve ser vigilante, sóbrio e prudente, para, no capítulo seguinte, aconselhar o general a mostra-se autoritário e severo, criando a imagem de um líder implacável para aqueles que quebram as regras marciais. Enfim, deve ser um líder bem preparado, pois assim poderá inspirar confiança em todos os soldados para a luta e não para a fuga. Se avançarmos, agora, até ao século XVI português, deparamo-nos com o primeiro tratado mundial que aborda a matéria que aqui estamos a tratar: a batalha naval. Trata-se da Arte da Guerra do Mar de Fernando de Oliveira, publicada em 1555. É um tratado que se antecipa relativamente aos dias de hoje, em matérias das ciências política e náutica, do direito internacional, da estratégia, e que até então não haviam sido equacionados, e que, segundo os actuais especialistas, continuam em vigor. Por mais de uma vez, Oliveira se revela conhecedor e seguidor de algumas matérias de Vegécio, embora afirme no prólogo, a propósito da guerra do mar: Da qual nenhum autor, que eu sayba, escreveo ãtes dagora arte nem documentos, ou se alguem della escreveo confesso que nam veo a minha noticia sua escritura, soomente de Vegecio cousa pouca. Em certos assuntos, Oliveira capta, actualiza e adapta conceitos de Vegécio inerentes à actividade militar terrestre e transpõe-nos para a guerra no mar. Também ali podemos encontrar referências às capacidades de liderança e sagacidade que um capitão de mar deve deter. Assim, no capítulo XIII, I Parte, observamos uma certa similitude com Vegécio, quando apõe a prudência como uma das qualidades fundamentais do capitão: cõvem que seja antre os outros como a cabeça antre os membros […] deve preceder em prudcia, esforço e muytas qualidades.[…] Deve ser o capitão esperto no entender, acautelado no fazer, manhanimo em sofrer, animoso pera acometer. E mais adiante Al de ser o capitão sagaz, e esperto pera conhecer o que t nos homs, seja tamb capaz e nam arrebente qualquer picadura, mas guardandosse dos sospeytos, espere tempo, tanta fineza de saber (Oliveira, IX, II Parte). Pelo exposto, a virtude essencial do capitão é a sagacidade, a capacidade psicológica para lidar com os homens, perceber os seus intentos. Deve também actuar com dissimulação, usando da fineza de saber. Embora Fernando Oliveira seja omisso relativamente a qualidades retóricas do capitão, é de admitir que se o capitão detiver aquelas qualidades, naturalmente que será capaz de animar os seus homens.

 

Nos discursos que aqui estão em análise, a frase prévia à arenga orienta-se, de certa forma, pela Arte da Guerra do Mar, uma vez que também não existem referências explícitas às capacidades retóricas do capitão ou do orador de circunstância. Em todo o caso, algumas daquelas virtudes constantes do tratado surgem com alguma regularidade nos engarces, contribuindo para a formação de um retrato valorativo das personagens, denotando, por isso, a adesão do historiador a tais personagens. Como atrás dissemos, a dissimulação com aqueles que lhe são contrários e suspeitos é uma das qualidades que o capitão deve possuir, como se observa neste engarce de Gaspar Correia: mas o Governador, que entendia suas falsas vontades, com muyta dessimulação lhes respondeo.[11] Harmoniosamente trabalhado, é o engarce seguinte: Luiz de Mello de Mendonça muito seguro, e sem mostras de algum receio (Couto, Década VI, Lv. III, Cp. III) em que o exemplo da fortaleza é importante para sossegar os ânimos dos homens no meio de uma cruel procela. Em síntese, os engarces apresentam sobretudo virtudes de liderança, importantes para a mobilização dos ânimos marciais.

 

Informação sobre o tipo de arenga pronunciado. No decorrer deste trabalho, aludimos um pouco a esta questão, embora o façamos agora com maior acuidade. Temos estado a ver que os engarces transportam consigo uma série de informantes úteis para a compreensão da própria arenga. Como escreve Iglesias Zoido (2006:17), existe uma estreita conexão entre um determinado tipo de engarces e a natureza da própria arenga, porque não se pronuncia o mesmo tipo de arengas em contextos distintos. Na verdade, enquanto um determinado tipo de arengas desenvolve preferentemente a componente argumentativa (didaché), outro tipo de arengas amplia a componente exortativa (paraínesis), pelo que a informação que os engarces nos transmitem acerca do ânimo dos soldados é, neste particular, crucial. Quando os soldados são assaltados pelo medo, pelo desânimo, de tal maneira que a derrota, a catástrofe se afigurem como desfecho mais plausível, então o capitão deve pronunciar uma arenga. Isso mesmo aqui foi declarado, ao citarmos as palavras de Fernando Oliveira (Cp. X, II Parte) que voltamos a recordar: primeyro todavia olhe e escoldrinhe bem a vontade com que a sua gente determina de pelejar, e se nelles sentir desconfiança ou frieza […] lhe faça hũa fala. Este é o contexto preferencial que justifica que o capitão pronuncie uma arenga, colocando o enfoque especialmente na componente instrutiva (didaché), uma vez que ela vem no sentido de contrariar esse estado de espírito. Deste modo, o engarce tem a função de precisar o ânimo das tropas e implica o tipo de arenga que se segue. Couto (Década VI da Ásia, Lv. III, Cp. III) ao descrever-nos uma tempestade, nota que na tripulação de Luiz de Mello grassa o medo: Os soldados pediram a Luiz de Mello de Mendonça, que quizesse arribar, porque parecia que os elementos todos estavam conjurados em seu damno, e que era temeridade querer ir contra a ira de Deos. De forma que o capitão lhes arenga, declarando que a honra não se ganha sem riscos e outros passaram incólumes por aquele mesmo golfo. Ou o caso colhido em Castanheda, quando os portugueses em batalha naval são confrontados com a chegada de reforços dos inimigos, o que leva à tristeza e ao desânimo, justificando que o capitão pronuncie uma arenga: quãdo acodem as outras doze lancharas dos immigos, que parece que achandose perto ouvirão ho das bombardas, e acodião; e quando os nossos as virão ficarão muyto tristes por quão cansados e feridos estavão, e Francisco de Melo os esforçou, dizdo (Castanheda, História, Lv. III, Cp. CLI). Portanto, no momento de proceder à análise de uma arenga, todo o interesse em se proceder ao estudo dos engarces, uma vez que eles podem determinar a classificação tipológica do discurso que se segue. Neste sentido, a informação fornecida pelo engarce torna-se determinante para a identificação de um tipo específico de arenga de reminiscência épica: a epipólesis. A historiografia clássica apresenta-nos, por vezes, um general percorrendo a ou a cavalo as diferentes linhas de um exército, exortando- o à guerra. Neste caso concreto, a fórmula do engarce que identifica a epipólesis, há-de contar, como afirma Carmona Centeno (2008: 47), necessariamente com um verbo de acção que transmita o movimento do general através do exército, bem como a presença de uma outra forma verbal que conta da respectiva exortação. Naturalmente que no âmbito do tema deste trabalho, se uma troca de elemento sobre o qual se desenvolve este episódio: da terra passamos ao mar. Em todo o caso, o esquema que se observa na epipólesis terrestre é transposto para o cenário marítimo. Assim, o capitão, embarcado num pequeno barco, percorrendo as restantes naus, arengará aos homens nelas embarcadas. No corpus em análise, existem dois exemplos de epipólesis prévias ao combate naval, um em Gaspar Correia[12] e outro em Couto (Década VI, Lv. III, Cp. III). Pela sua beleza retórica-literária e visualista, o exemplo de Correia merece aqui particular atenção. Trata-se de um capítulo dedicado exclusivamente à revista alardo - de todas das tropas de todas as embarcações da armada, levada a cabo pelo governador da Índia. Assim, acto primeiro, o governador ordenou aos capitães das restantes naves que aprestassem os seus homens com as respectivas espingardas. Acto seguinte, o governador deslocando-se, não em cima de um cavalo, mas num catur [pequena canoa] correo todas as naos, entrando em todas. Esta é uma ocasião privilegiada para o narrador identificar não só os capitães e as figuras principais daquela armada pelo nome próprio, mas também para nomear as múltiplas classes de embarcações, começando pelas maiores até às mais pequenas. Em tudo lembra uma cena colhida da Ilíada de Homero. Finalmente, a frase-prévia à arenga, volta a afirmar: entrando o Governador em todos estes navios, falando a toda a gente. Temos pois, um verbo de acção entrando conjugado no gerúndio que implica a repetição do movimento, bem como o verbo falar, que embora não tenha a força elocutória exortativa esperada, é assumido no seu pleno valor parenético, com a própria arenga: falando a toda a gente grandes honras e louvores. Como se vê, trata-se de uma epipólesis sem decomposição[13], pois o mesmo discurso repete-se várias vezes em diferentes lugares a secções separadas do público-alvo. Algo similar, encontramos em Couto no seguinte engarce: O Governador meteose em hum navio ligeiro, e foi correr as nossas fustas, e fez a todos hũa muito breve fala. Mais uma vez, aquela fórmula atrás enunciada se repete, o governador, movimentando-se numa pequena embarcação foi correr - as restantes embarcações, arengando às respectivas tripulações - fez a todos hũa muito breve fala. O que também de comum entre estas duas epipólesis, é que por um lado, esta tipologia de arengas não se apresenta em estilo directo, como a maioria do corpus, mas sim, em forma de “report speech” no caso de Gaspar Correia e em estilo indirecto no exemplo de Couto. Desta forma as palavras de Carmona Centeno (2008: 42) relativamente à epipólesis clássica adaptam-se aqui bem, quando afirma que para esta tipologia el estilo directo no es la forma discursiva más empleada. Este estudioso (2008: 381-386) apresenta uma análise precisamente sobre a epipólesis no mar. Somos levados a concordar com ele, pois a pronunciação de uma epipólesis antecipa um combate naval que se adivinha épico, e a sua introdução na narrativa vem acrescentar dramatismo e dinamismo à cena. Pelo exposto, podemos com segurança concluir que na epipólesis naval, o esquema narrativo da epipólesis prévia a um confronto terrestre foi transposto para um cenário marítimo, e isso, deve-se, sem dúvida, à influência da retórica.[14] De forma que os historiadores, cientes dessa tradição histórico-literária, reproduziram o modelo na historiografia quinhentista.

 

Indicar o resultado ou as consequências de um discurso. Ao contrário da frase prévia, a frase posterior caracteriza-se pela sua linearidade o que lhe confere menor importância. Na maioria dos casos, uma oração participial, diz-nos que a arenga foi concluída, retomando-se a narração dos feitos. Casos que reflectem o modo como o discurso foi recebido pelos respectivos receptores do discurso, que pode ir do regozijo geral: E animados todos coestas palavras (Castanheda, História, Lv. VII, Cp. LXXXII), até ao acatamento submisso das palavras do capitão: Ao que nom ouve nenhum que ysto lhe contrariasse, por nom ficar falto de sua honra.[15] Para além de reproduzir as palavras proferidas pelo chefe militar, a arenga tem ainda como funções antecipar acontecimentos subsequentes, bem como clarificar os verdadeiros motivos de uma vitória ou de uma derrota. Tanto assim é que, com frequência, o capitão na arenga, traça aos homens a estratégia a seguir, a disposição dos navios, o tipo de artilharia a usar, entre outros aspectos. Quando se retoma o fio da narrativa, obviamente assistimos à execução prática desse dispositivo estratégico, bem como à sua influência directa no sucesso do confronto militar. Dito de uma forma lapidar: existe uma conexão entre o pronunciamento de uma arenga individual e o seu resultado. Dissemos atrás que a historiografia portuguesa de quinhentos tinha uma propensão fortemente patriótica. Aqui temos a prova: do corpus analisado, o pronunciamento de uma arenga prenuncia sempre uma vitória. Embora existam duas versões de uma arenga que precedem uma mesma derrota, a sua inserção nas obras tem como objectivo exaltar o heroísmo do capitão Lourenço de Almeida, que com as pernas partidas, ordenou que o atassem ao mastro do navio, continuando a comandar os seus homens, até à perda total. Donde se pode concluir que o pronunciamento da arenga determina em alto grau o seu resultado final.

 

c)           Finalmente, o terceiro nível de engarces prende-se com aqueles secções que não fazendo parte da narração dos feitos, todavia justificam a sua existência em função dos discursos que introduzem. A sua extensão não é homogénea, dependendo dos casos em concreto, contudo é um pouco mais extensa que a frase prévia, ajudando a entender todo o contexto oratório. Servem o propósito de descrever a situação das tropas, a sua preparação militar ou o estado anímico, etc. Dada a sua especificidade, a sua presença é rara no corpus de arengas precedentes a batalhas navais. Apesar de tudo, existe um caso muito evidente em que este terceiro nível de engarces se auto-justifica pelo discurso que introduz. Também não é despiciendo o facto de o mesmo surgir num autor, como João de Barros, cujos discursos estão sempre rodeados de uma certa solenidade retórica. Passamos a transcrever:

 

e foy surgir no rio de Goa a vinte dias de novbro do ano de quinhtos e dez. Afonso Dalboquérque como a principal cousa que avia mister pera cometer aquella cidade Goa, era levar os homes contentes e alegres pólos ver em algũa maneira descontentes do que se passara nella quãdo a leixáram aos mouros, posto que sobréste caso em alguũs conselhos se tinha justificado, toda via lhe pareceo necessário dar pubrica razam de sy, pola experiencia que tinha quanto adoçava o animo dos homes que obedecem as justificações do superior, e mais nos tempos que elles vam offerecer suas vidas debaixo de seu mãdado. Assy que movido destas causas (posto que em todos visse prontidã pera aquelle feito) quis próporlhe este arrazoamento[16]

 

Pelo exposto, o historiador, informa-nos claramente que o objectivo primordial do discurso de Albuquerque é animar as tropas, “adoçar” o ânimo dos homens antes de atacar a cidade de Goa, que fora conquistada e posteriormente abandonada. Neste exemplo, nota-se uma simbiose perfeita entre o terceiro nível de engarces e a frase prévia, porquanto esta acaba por resumir o conteúdo do contexto anterior. Para terminar, este terceiro nível de engarces contribui também para o dramatismo litúrgico que envolve quase sempre o pronunciamento de uma arenga.

Acabámos de ver que existem três níveis de engarces com desempenhos diferentes contribuindo para a integração harmónica das arengas na narração dos feitos. Para além disso, como tivemos oportunidade de ver, trata-se de um momento oportuno para o autor expressar algum impressionismo interpretativo na apresentação de discursos e respectivos oradores.

 

 

5.    Análise retórica das arengas

Depois de termos visto a importância que os engarces detêm no processo de contextualização dos discursos, deslocamos agora o enfoque para a estrutura interna do próprio discurso. Conhecedores da historiografia clássica, os autores, de que aqui nos ocupamos, procuraram também apresentar algumas personagens de uma forma memorável, fazendo-as pronunciar arengas em momentos bélicos historicamente determinantes. E tanto assim é que em anos marcados por confrontos militares cruciais para a manutenção do Estado, assistimos a uma concentração e sucessão de arengas. Ao invés, em lapsos temporais de baixa belicosidade, assistimos a uma rarefacção dos discursos. Com a introdução de discursos, uns em estilo directo, outros em estilo indirecto, outros ainda apresentados em resumo, os historiadores portugueses, tal como acontecera com os predecessores clássicos, procuraram adiantar acontecimentos (em muitas arengas é frequente o capitão expor a estratégia de combate ao inimigo), salientar o carácter e a fineza de saber do mesmo orador e também clarificar os motivos da vitória, visto que a arenga precede em todo o corpus uma vitória.[17] Estes historiadores portugueses, na hora de introduzir uma arenga no seu relato, assimilaram e seguiram os modelos clássicos, e no caso específico da arenga, do modelo proposto por Tucídides. Efectivamente, ao procedermos a uma leitura atenta destas arengas navais, facilmente podemos identificar na sua maioria, uma estrutura interna que integra duas distintas linhas argumentativas. Uma de tipo explicativo (didaché), que procura apresentar um cenário convincente e favorável antes que se inicie o confronto militar, no qual se expõe a estratégia a seguir para enfrentar o inimigo, recordando- se comportamentos do passado que podem ser cruciais para o presente. A outra linha de pendor exortativo (paraínesis), e como a própria denominação anuncia, tem por objectivo animar e encorajar as tropas para a guerra, de forma que prefiram uma morte honrosa digna dos pergaminhos dos antigos a uma fuga vergonhosa.[18] Por sua vez, cada uma destas duas linhas argumentativas desenvolve uma gama de lugares-comuns ou topoi retóricos, como apresenta Antolín (2000:90). Assim destacam-se cinco núcleos argumentativos de lugares comuns: justum o orador procura demonstrar que a acção bélica a executar é justa e colhe o favor divino; utile o orador procura destacar as vantagens gerais e pessoais a retirar desse confronto; necessarium o orador demonstrará que a vitória é o único caminho para a salvação; possible argumento que enfatiza a possibilidade e a facilidade da vitória; dignum argumento fundamental de exortação das tropas, uma vez que toca na ética e brios pessoais.

Um confronto entre estas linhas argumentativas e o corpus de arengas aqui em apreço mostra-nos que a componente estratégico-explicativa (didaché), particularmente nas arengas mais extensas, apresenta a estratégia militar a seguir, recorrendo com frequência ao tópico retórico do justum, uma vez que a guerra dos portugueses aos árabes no oriente, não é mais do que reconduzir aqueles territórios, primitivamente cristãos, ao rebanho de Deus, nessa medida a guerra que vão empreender tem o favor divino. Nesta orientação, é utile aquela guerra, pois a vitória produzirá condições favoráveis de comércio quer para o Estado quer para as bolsas individuais. Embora, os inimigos sejam mais numerosos, e porque assim aconteceu no passado, é possible derrotá-los novamente, quer pela organização e determinação, quer pela força dos canhões. Por outro lado, a secção exortativa (paraínesis) enfatiza que a vitória proporcionará a todos a perenidade dos seus nomes nas gerações vindouras (dignum). No corpus, os discursos em análise privilegiam, quer pela extensão média/longa, quer pelo desenvolvimento, a primeira linha argumentativa, a componente explicativa. Na verdade, o facto de serem extensos discursos, em estilo directo, permite que o narrador, nesta secção, coloque na boca do protagonista-orador a explicação de toda estratégia e táctica militares a executar de seguida. Paralelamente, este processo também possibilita que o narrador faculte ao narratario-leitor as circunstâncias que rodearam aquele combate decisivo. Desta forma, ao propor este conjunto de informações pela voz destes actores/oradores em estilo directo, fica o próprio narrador, ele próprio, isento de proporcionar tais informações no decurso da narrativa. Cremos ainda que, um outro factor potencia o desenvolvimento da componente instrutiva e, por consequência, a verificação das funções anteriormente expostas. Assim, não nos podemos esquecer, como anunciámos em outro momento deste trabalho, de que estas arengas navais são pronunciadas previamente às batalhas, por vezes com um lapso temporal de dias, e em ambiente restrito, diante dos restantes capitães da armada. Este contexto preciso, permite que o narrador, pela boca do orador, teça um amplo quadro estratégico-táctico da situação, tendo oportunidade para tocar com minúcia os diferentes lugares comuns retóricos, resultando daí, portanto, uma ampliação da secção explicativa. Ao invés, uma arenga dita no local da batalha, e com os soldados ansiosos pela refrega, o orador havia que explorar argumentos que enaltecessem mais o comportamento nobre, donde resultaria, pela sua intrínseca brevidade, um acento na componente parenética da arenga.


 

Descendo agora ao conteúdo argumentativo dos discursos, como o declarámos, cada uma das componentes da arenga desenvolve uma série topoi retóricos ou telikà kephálaia, que provêm das arengas da historiografia greco-latina. O nosso propósito é, pois, identificar os topoi retóricos mais frequentes no corpus seleccionado, utilizando para esse efeito, os valiosos estudos efectuados neste âmbito, como o de J. Albertus (1908), Navarro Antolín (2000) e Iglesias Zoido (ed.) (2008), salvaguardando que, dada a brevidade deste trabalho, vamos apenas efectuar uma aproximação a este tema. Estes tópicos retóricos estavam claramente assumidos pela historiografia portuguesa quinhentista. A prova é que a Arte da Guerra do Mar de Fernando Oliveira dedica o capítulo X, da II Parte, precisamente à virtuosidade e composição da arenga. Antes de dar batalha ao inimigo no mar, deve o capitão aperceber-se minuciosamente do ânimo dos seus homens. Se sentir algũa desconfiança ou frieza em alguns deve proceder como Judas Macabeu, deixando-os para trás, para que não acobardem os outros. Em alternativa, faça o capitão «hũa fala em que os amoeste do que cumpre fazer», recorrendo o capitão aos diferentes tópicos retóricos consagrados, para animar os seus:

 

faça hũa fala em que os amoeste do que cumpre fazer por sua salvaçam e da terra, por serviço de Deos e delrey, por sua honra e por seu proveyto, mostrelhe as oportunidades que se offerecem pera pelejar, e facilidade para vencer, contelhes a justiça que tem por sua parte, e a sem rezam dos imigos, e digalhes quanto devem confiar no favor divino que he a principal ancora em que devem escorar. Tragalhes aa memoria a fama de sua naçam, e a gloria que seus passados ganharam, as vitorias que ouveram em especial contra essa gente com que ham de pelejar.

 

A sucessão de potenciais argumentos continua, terminando com a oportunidade de o capitão mostrar aos seus, os navios dos contrários, desvalorizando quer o número quer o armamento. Vejamos pois a distribuição dos lugares-comuns pelas duas secções argumentativas

 

 

a)A argumentação instrutiva e estratégica da arenga (didaché)

 

Esta componente da arenga procura, pois, apresentar, num quadro convincente, a estratégia político-militar a levar a cabo durante a batalha. A ideia é despertar e animar os homens por meio da explicação técnica e estratégica da batalha a travar, recordando comportamentos passados tomando-os como modelo. Esta secção instrutiva não será intelectual mas, sobretudo, emocional, como afirma Iglesias Zoido (2008b: 246). A exposição da estratégia não pode ser apenas em termos de compreensão militar, há-de também infundir no auditório a confiança, o destemor. Mais, a componente exortativa seguinte, vingará plenamente, se nesta componente a explicação redundar na assumpção plena pelas tropas do seu real valor. Vejamos então quais os topoi retóricos mais importantes e logo mais frequentes que enformam a secção instrutiva das arengas navais.

 

Justum o topos do justum é de todos os topoi retóricos aquele que detém maior importância. Esta vantagem advém-lhe não da sua assídua presença na quase totalidade das arengas, mas também da maneira como os restantes topoi se lhe encontram retoricamente subordinados. Por outro lado, é necessário precisar que o topos retórico do justum se materializa nos discursos por meio do lugar-comum da guerra justa, conceito de lastro mais amplo do que a própria retórica discursiva. Na verdade, por guerra justa pode entender-se uma verdadeira ideologia política do estado-nação, e que, naturalmente, transbordou para a historiografia e, por consequência, para os próprios discursos inseridos. O exemplo concreto que prova esta ideia, identificamo-lo em João de Barros, historiador comprometido com a ideologia oficial. Trata-se precisamente da arenga de Francisco de Almeida, prévia à batalha naval de Diu, em 1509:

 

Porem quanto á parte de tam divida e alta honra como se deve ás insígnias que todos seguimos, e debaixo do favor das quáes pelejamos, que sam as bandeiras da melicia de Cristo nosso redemptor, e reáes armas da coroa de Portugal; esta me persegue, esta me atormenta e me acuda dentro do meu peito, como estímulos de justa vingança, vendo com quanta negligencia minha se passa o tempo sem acodir a esta nova e soberba gente dos Rumes, confiados na potencia do seu Soldam e nas offértas de quem os chama. Os quaes em nossa face, ousaram despregar e estender suas lũas e nome escrito do seu antechristo Mahamed em suas bandeiras, em desprezo da nossa religiam Christaã, e do nome Português tam celebrado per todo o mundo, a quem Deos deu este particular sobre todalas outras nações, defensores da e leáes ao serviço de seu rey.[19]

 

Pela expressão «as insígnias que todos seguimos» entendemos os interesses expansionistas do estado e a propagação da religião cristã. De forma que e império eram duas faces duma mesma moeda, amplamente justificadas, no Oriente, pelo conceito de guerra justa. Guerra dirigida ao árabe, duplamente inimigo da expansão da e do império. O conceito de guerra justa contra os árabes não é um conceito exclusivo e criado no século XVI, uma vez que o encontramos logo, em toda a Península Ibérica, nos tempos da Reconquista. Expulsos os árabes da Península, os portugueses passam, no século XV, ao norte de África, onde vão dar novo alento à guerra justa contra o inimigo de sempre, procurando reaver territórios que haviam sido cristãos. E foi precisamente para encontrarem um aliado cristão na luta contra os mouros, com quem pudessem também comerciar, que os portugueses empreenderam a viagem para a Índia. Esperavam encontrar comunidades cristãs oriundas dos alvores do Cristianismo. Chegados à Índia, foi uma verdadeira desilusão verificar que havia mais mouros em Goa e Cochim que em toda a costa da Barbaria (Tomaz, 1998:212) e que, para além de inimigos da fé, eram, agora, também rivais económicos. Face a este problema, o estado desistia desta empresa, ou enfrentava as dificuldades, socorrendo-se da força militar, assente no poderio naval. Seguindo esta última opção, o empório comercial adquiriu uma tonalidade guerreira, renovando no oriente, as campanhas militares marroquinas do século precedente, e nas palavras de Thomaz (1998:212), era um ideal de guerra santa, uma como que nacionalização da ideia de cruzada. No entanto, para que a guerra contra os árabes fosse aceite internacionalmente como justa pela Republica Christiana, tiveram os portugueses de se socorrer de princípios básicos de Direito, apoiados na filosofia de Santo Agostinho, que permitiam fazer a guerra quando houvesse negação da liberdade de comércio pacífico, negação da pregação do Evangelho ou ocupação pelos infiéis de terras que foram cristãs. Isso declara Fernando de Oliveira (1555: IV, II Parte) num capítulo dedicado exclusivamente a esta matéria, afirmando que a guerra justa que podemos fazer, segũdo santo Agostinho, he aquela que castiga as sem justiças que algũa gente fez e nam quer emendar. […] E sobre todas he justa a guerra que castigas as offsas de Deus contra aquelles que delle blasfemão, ou deyxão sua fee, como sã os hereges, apostatas, ou empede a pregação della, e perseguem as pessoas que se a ella covertem […]. Atente-se na similitude entre esta afirmação de Oliveira e a arenga do próprio filho de Francisco de Almeida, Lourenço de Almeida: E não queyrais mais que serem eles imigos de nosso senhor Jesu Christo, que aveis de crer que nos guiou a esta terra pera destruição de seus habitadores, que como tiranos lha tem ocupada, e brasfemão nela ho seu santo nome, sendo criada por ele pera ser nela louvado (Castanheda, História, Lv. II, Cp. LIV) Efectivamente, o Oriente fora cristão nos primórdios do Cristianismo, cedendo religiosamente à força do Islão. Tratava-se, pois, de resgatar estes territórios de novo para o Cristianismo. Perante este estado de coisas, não admira que a própria Santa tivesse patrocinado a empresa do Oriente, atribuindo bulas e outros decretos papais que absolviam todos aqueles que morressem pela expansão do cristianismo na luta contra os infiéis. Trata-se de uma questão importantíssima, porque no processo de convencimento dos homens para a guerra, era necessário assegurar àqueles que iriam possivelmente morrer, que estavam de facto a defender uma causa justa. Sendo Deus naturalmente justo, assegurar-lhes-ia a vitória, ou o prémio da vida eterna. Por esse motivo, os oradores fazem amplo apelo ao divino: E de crer he que pos nos pelejamos por exalçamento de sua sancta fé, que assi nos ajudará como aos passados, e tendo esta de vencermos fica tirado ho receo de sermos vencidos e de se perder ho estado da Índia (Castanheda, História, Lv. VI, Cp. XXI). Por esse motivo, não admira a quantidade de clérigos, alfaias religiosas e mesmo relíquias que acompanhavam as armadas e que tinham uma eficácia poderosa no ânimo dos soldados. Algumas vezes, após a arenga do capitão-mor, também arengava o clérigo de serviço, a fim de maximizar o nível anímico dos homens, instigando-os à guerra santa e ao ódio aos «perros», ou seja, os mouros: capela seu se subio ao chapiteo da nao, e mostrando crucifixo a todos os da frota dizia pregandolhes que se lembrassem dos mandamentos de deos, e que ele perdoava de sua parte os peccados a todos aqueles que se arrepdessem de coração e de tenção de pelejar por sua sãta fê, e dizia Ora filhos meus vamos cõtra os imigos de boa võtade com confiança que os avemos de vencer, pois levamos por capitão a nosso señor Iesu Christo (Castanheda, História, Lv. II, Cp. XXV). Mas é no excerto de João de Barros, nessa famosa arenga de Francisco de Almeida, antes da batalha naval de Diu, que se aponta quão digna e lembrada será a morte daqueles que morrerem, tanto pela religião, como pelo estado, como pela pátria: por nósso rey, y por nossa grey, que sam as mais justas e gloriósas causas de morrer que alguem pode desejar. Porque a ley glória de martírio; o rey premio de honra galardam em fazenda áqueles que nos succedem na herança; e a grey que é a congregaçam dos nóssos parentes amigos e compatriotas a que chamamos republica, celebra nosso nome de geraçam em geraçam fim do mundo. (Barros, Ásia, Década II, Lv. III, Cp. III).

 

Possible este topos retórico adquire também uma importância relevante, uma vez que vem frequentemente apenso ao topos do justum. Não podemos perder de vista que a marinha de guerra portuguesa no oriente, em número de homens e de embarcações, era irrisória, face ao poderio numérico dos Turcos e aliados. De forma que o problema de poucos enfrentarem muitos coloca-se com frequência. Neste quadro competitivo, os capitães teriam de potenciar as suas capacidades retóricas para minimizar o embate que os inúmeros inimigos provocariam nos portugueses. De facto, havia uma saída, um caminho a seguir que era o caminho do sonho, da possibilidade. Era preciso fazer acreditar àquele punhado de homens, que poderiam vencer verdadeiras constelações de inimigos. Trata-se, pois, de transformar o argumento mais fraco, tornando-o num dos mais fortes. Assim, poucos podem vencer muitos, quando estes poucos defendem uma causa justa, naturalmente propícia ao favor divino:

 

e creo verdadeyramento que assi como nos [Nosso Senhor] ousadia, pera que sendo tão poucos ousemos desperar a tantos milhares de gente como sam nossos imigos, que assi nos ha de dar efforço pera lhe resistirmos; e que quer oje fazer tamanho milagre como este sera, pera que seja conhecido seu poder; e sua santa exalçada e da sua parte vos peço eu que assi ho creais, porque sem isso ainda que nos fossemos tantos como imigos e eles tãtos como nos, todas nossas forças não serião nada pera os vencer, e sendo como digo toda a multidão dos imigos vos parecera muyto pouca pera os vcerdes, e eles vos julgarão pelo dobro do que eles sam pera vos temer.[20]

 

O topos do possible passa também por o capitão depreciar e minimizar os inimigos, tentando identificar-lhe pontos fracos e que naturalmente se revertam em vantagem para os portugueses: Porque pela nova que tenho, todos sam forasteiros e gente alugada, que no tpo dáfronta como nam defendem casas próprias, molher, filhos, ou honra, no primeiro ímpeto nosso logo viram as costas e despejam o lugar que defendem (Castanheda, História, Lv. I, Cp. LXVI) Se menospreza o inimigo, o capitão contrapõe com as vitórias anteriores contra esse mesmo inimigo, motivo pelo qual ganharam honra e fama diante de todos os povos: em todalas idades em todolos tempos e em todalas partes da Európa, Africa, e agora nestas de Asia que descobrimos e conquistamos, nos tem dados muy illustres victórias desta bárbara e pérfida gente. (Barros, Ásia, Década II, Lv. III, Cp. III). Finalmente, o possible passa por o capitão encarecer alguma vantagem ou superioridade técnica ou estratégica. Estando em contexto naval, é necessário apregoar superioridade, por exemplo, ao nível da artilharia ou da flexibilidade das embarcações porque posto que est embarcados a nossa artelharia lhe arrõbara os seus paraós; e como eles mais alterosos que os nossos bateis nos poderá fazer a sua outro tãto; (Castanheda, História, Lv. I, Cp. LX). Ou ainda aproveitar um momento de menor vigilância por parte do inimigo para o atacar: cidade Dadem que himos cometer, do que seus moradores estarão bem descuydados, porque de lhes parecer que na Índia teremos muita ocupação, estarão descuydados da nossa ida; equãto menos apercebidos esteverem parela, tanto mayor espanto terão de nossa chegada. (Castanheda, História, Lv. III, Cp.III).

 

Utile Cientes de que podem alcançar a vitória, o capitão optará por lhes demonstrar quão útil é esse vencimento quer do ponto de vista para o colectivo, quer para o estado ou para a religião, quer do ponto de vista pessoal. Sabemos quão importante era o domínio do mar, para controlar as redes comerciais. Efectivamente, falamos de uma talassocracia: afastando os concorrentes directos, ficavam os portugueses senhores do mar porque desbaratando os Mouros do mar, que seria com muyta mortindade delles, ficavão senhores do mar.[21] afirmámos que fé e império seguem a par. A vantagem para uma, é-a necessariamente para o outro:

 

e se assi ho fizermos vingaremos as brasfemias que estes perros offendem a magestade divina, e ganharemos fama, e aquiriremos proveito com tão boõ serviço, como sera ganhar hũa cidade tão populosa, escala de toda a navegação dos mouros do mar roxo, e chave de toda a fortaleza do estreyto, que tomada tira toda a esperança ao Soldão de mandar armadas aa Índia, e anos de todos os sobre saltos em que nos põe cada dia a vinda dos rumes, e tirara a esperança dela aos mouros da Índia, e acabarão de se entregar por vassalos del rey meu senhor, no que receberemos grande descanso com ficar livres do trabalho da guerra;[22]

 

Como se pode ver, a tomada de Adém, à entrada do Mar Vermelho, redunda em vantagens, para a cristã, mas também para o estado, que, por um lado, passa a controlar todo o comércio que do oriente, através do Egipto, chegava à Europa. Por outro lado, impedia também que as armadas turcas assolassem a Índia no apoio aos reinos autóctones, ficando, deste modo, todos estes reinos disponíveis para aceitarem a suserania da coroa portuguesa. Tal conquista era uma ambição antiga e resultava assim em numerosos proventos para a Coroa. Mas a vitória pode redundar em utilidades materiais para os homens. É por isso que Francisco de Almeida, antes da batalha, faz anunciar a todos uma série de benefícios a cada um dos membros da armada, desde os fidalgos até aos escravos: que todos quantos aquy são comigo presentes ajão honras de cavalleiros perfeitamente, assy vivos, como os que Nosso Senhor levar pera sy, pera honra de seus herdeiros; e o que he cavalleiro lhe outorgo as honras de fidalguia, e a todos os degredados perdão livremente de todos seus degredos, e aos omiziados livre perdão, da parte da justiça, de seus delitos e os escravos que neste feito morrerem serão pagos a seus donos por cada hum cincoenta cruzados, (Castanheda História, Lv. III, Cp. CV).

 

Necessarium o topos do necessarium é o que menor representatividade tem nos discursos, o que não impede que tenha importância, como veremos. Este é o argumento que é proferido em situações de vida ou morte, em que a vitória é a única via para a salvação. Ocorre em situações de assédio ou de cerco, situações a que aqui os portugueses não aparecem sujeitos. Se os portugueses aqui não se debatem com essa situação preocupante, teremos de analisar o lado do inimigo, porque os ataques portugueses são constantes a cidades costeiras. Efectivamente, os portugueses, seguindo uma estratégia militar que obteve sucesso no norte África, repetiram no oriente, verdadeiros ataques-surpresa a cidades/fortalezas costeiras, acompanhados do desembarque anfíbio de tropas. Eram verdadeiros raids dos tempos modernos. De forma que esses sitiados, de facto, viviam momentos de sobressalto, cuja salvação da vida, como da religião, estava na vitória. acima falámos da importância estratégica da cidade de Adém, ambição visionária de Afonso de Albuquerque. Muito do futuro do estado da Índia passava pelo controlo daquele estreito. E essa importância passou à Historiografia. De facto, a conquista de Adém proporciona-nos, pela pena de Castanheda, a única parelha de arengas, da totalidade do corpus. Enquanto o governador português, na sua arenga, como vimos, valoriza a utilidade da tomada de Adém, o líder mouro, Mira Mergena, animou os seus, lembrando-lhes a necessidade de vencerem, pois, caso contrário, se fossem vencidos, a sua religião maometana deixaria de ter ali culto, e, - por amplificação o próprio centro de peregrinação, Meca, seria tomado e destruído pelos portugueses: lembrãdolhe quão pouco duraria sua ley naquelas partes se os nossos tomassem a cidade, e que muy cedo tomarião a casa de Meca e a destryrião, o que seria muy grande desonrra de sua ley (Castanheda História, Lv. III, Cp. CV). Como os portugueses não sofrem aqui cercos, nem as arengas são pronunciadas no decorrer das batalhas, o tópos do necessarium não é actualizado como forma de salvação. No entanto, este mesmo tópos é referenciado numa outra perspectiva, isto é, se os portugueses não se empenharem na luta, verão a sua fama, o seu valor ganho em tantas batalhas, ser ofuscado. Tal facto tornar-se-á comprometedor para a imagem que eles construíram no oriente, porque uma derrota significava que os povos indígenas cresceriam em soberba e insolência contra a presença portuguesa, deixando de lhe dever respeito e medo. Isso significaria uma ameaça séria para a presença e interesses da coroa. De forma que o topos que nestas circunstâncias é o topos do dignum/gloriosum que se actualiza, como no exemplo: e não ho fazendo assi dareis lugar a que se escureça a muyto grande fama que tdes ganhada nas notaveis façanhas que ate agora tendes feytas (Castanheda, História, Lv. II, Cp. LXV) por isso, é crucial apelar para a honra e dignidade desde muito firmadas mas que necessitam de ser renovadas porque será acrescentamento da honrra e fama que ganhastes ate gora (Castanheda, História, Lv. I, Cp. LXXIII).

 

Em suma, a didaché assume-se, sobretudo nas arengas mais extensas, como o elemento fulcral na predisposição das tropas para a batalha, procurando demonstra-lhes que os cenários político, militar e religioso, são inequivocamente favoráveis à vitória, de onde advirão benefícios para a coroa e para cada um, individualmente. Neste sentido, esta secção procura erradicar qualquer réstia de temor que possa existir nos esconsos da mente dos combatentes.

 

b) A argumentação exortativa da arenga (paraínesis)

Em muitas arengas é possível identificar claramente uma fronteira entre a didaché e a paraínesis. Essa demarcação é assumida por um articulador do discurso conclusivo, de que são exemplos «por isso», «por tanto» ou «assi». Embora seja esta a última parte da arenga, ela, no entanto, detém uma importância crucial no seu sucesso pragmático: serão estas derradeiras palavras do orador, que ecoarão na mente dos combatentes no momento da refrega. É pois a última oportunidade que o orador tem para persuadir os seus homens, e que, por esse motivo, se deve empenhar retoricamente, usando uma linguagem fortemente exortativa, mobilizadora de emoções e sentimentos. Embora não exista uniformidade estrutural nesta componente da arenga, num número reduzido de discursos, é possível, contudo, apontar tendências. Assim, algumas arengas iniciam esta secção com um resumo/ rememoração de alguns topoi anteriormente tratados, designadamente o topos do justum:

portanto senhores e amigos, pois vos Deos deu animo, forças, prudcia, e seguimos ley sancta, e servimos a príncipe a quem elle mesmo Deos concedeo o que nam deu a nenhũ de seus antepassados, […], devemos crer que nós outros seus criados e vassállos trazemos em favor nosso aquelle espírito de Deos que movéo a elle pera cõtinuar esta tam alta empresa (Barros, Ásia, Década II, Liv. V, Cp. IX).

Após este epítome, vem então, uma forte componente parenética, fazendo uso de conjuntivos e imperativos exortativos, intencionalmente seleccionados para moverem emoções. Em termos retóricos, este é o momento em que os tópoi do honestum e dignum têm uma atenção privilegiada, pois sucedem-se apelos para a honra, para a dignidade, quer pátrias quer pessoais: encomendovos muyto como a verdadeiros Christãos que não queirais perder esta gloria por algũa pouca dafrõta que podereis oje mais receber que os outros dias; porque será acrescentamento da honrra e fama que ganhastes ate agora (Castanheda, História, Lv. I, Cp. XXVIII). Quanto ao lugar-comum da honra, é interessante verificar que ele mesmo condicionou a forma como os portugueses combateram e lutaram no oriente. Atente-se então neste excerto retirado de Couto (Ásia, Década IV, Lv. V, Cp. V): e que ganhassem aquella honra a espada, porque assi ficaria a vitoria mais fermoza, e ao primeiro que investisse navio lhe prometeo cem cruzados. Se nos primeiros anos na Índia, os portugueses, nos confrontos navais, usaram navios de alto bordo, com artilharia pesada, rapidamente recuaram nas suas intenções. Efectivamente, por pressões de fidalgos, alegando precisamente que nestes combates navais à distância não se ganhava honra, bem como forjados por um espírito de cruzada desenvolvido em Marrocos, em que os combates eram feitos corpo-a-corpo, à espada, as batalhas navais mudaram de estratégia. Rapidamente, os navios grandes foram substituídos por outros mais pequenos, que permitissem o assalto à abordagem das embarcações inimigas, e a artilharia, também ela substituída, o que, a longo prazo se revelou uma retrocesso militar. De facto, para se ganhar honra, os portugueses entendiam que, como diz João de Barros, era necessário ter espadas cevadas do sangue (Barros, Ásia, Década II, Lv. III, Cp. III). Por esse motivo anacrónico, estas exortações nos finais das arengas são recorrentes. Finalmente, estando os homens persuadidos e cientes do que foi dito até ao momento, a arenga encerra por meio de uma amplificação e antecipação da vitória, com o orador, naturalmente, a invocar a intercessão de Deus, da Virgem, que eu confio em Deos que nos de dar vitoria delle (Couto, Ásia, Década VI, Lv. IX, Cp. III) ou de um santo, que não poderia ser outro, senão Santiago… o Mata Mouros: lhe parece pouco o que ymos fazer pera o que fará tanto que me ouvir invocar o apostolo Sanctiágo capitam de nossas victórias (Barros, Ásia, Década II, Lv. V, Cp. IX).

No final deste ponto, podemos verificar que as arengas navais da historiografia portuguesa quinhentista tentam seguir na sua estrutura interna, a organização consagrada pela historiografia clássica. Na verdade, as mais extensas, apresentam uma divisão em duas secções argumentativas, uma explicativa (didaché) e outra exortativa (paraínesis). Enquanto a primeira, por meio da explicação persuasiva da teia político-militar, procura infundir confiança nos homens, a segunda intenta, por meio da exaltação dos argumentos da justiça (humana e divina), da honra e da memória futuras, desencadear nos corações dos homens o desejo de combate. Observámos, pois, que os historiadores portugueses de quinhentos conheciam bem os diferentes topoi retóricos e sapientemente conseguiram enformá-los com as ideologias culturais, políticas e religiosas que atravessaram a História dos portugueses de antanho, que embora tendo um pequeno berço para nascer, tiveram o mundo inteiro para morrer.

 

6.    Conclusões

Como notas finais, vamos sublinhar algumas questões. Este é provavelmente o primeiro estudo, singelo é certo, que abordou as relações que unem a Retórica e a Historiografia portuguesa do século XVI. Na ocasião de se examinar essa vasta produção historiográfica é importante que os estudiosos prestem a atenção devida a esses discursos militares com que os historiógrafos e cronistas semearam os seus relatos narrativos. É hora de se afastarem determinados complexos sobre a veracidade desses discursos, porque, mais importante do que isso, é que estas arengas escondem nos esconsos das entrelinhas, muita da ideologia que impeliu este país no século XVI e são por isso cruciais para a compreensão dessa época. Neste particular, a arenga naval assume maior relevância uma vez que o império português tinha os seus pilares assentes precisamente no oceano, sobretudo o estado português da Índia. É significativo e relevante assistir à pronunciação de arengas retoricamente bem elaborados por protagonistas como Francisco de Almeida ou Afonso de Albuquerque, a bordo de uma nau diante dos capitães. propósito claro de Barros, Castanheda, Correia e Couto, conhecedores da tradição clássica, elevarem os actores e os feitos pátrios à mesma condição e até superação dos feitos homónimos de gregos e latinos. De forma que, fica provado, que estes historiadores, conseguiram habilmente, não pela experiência de homens do mar, mas sobretudo pela erudição literária clássica, edificar monumentos literários duradouros e que merecem no futuro um estudo completo dos discursos militares inseridos.

Luís Miguel F. Henriques

Escola Superior de Educação Portalegre (Portugal) luduvicus.m@gmail.pt


 

 

BIBLIOGRAFIA PRIMÁRIA

 

BARROS, J. (1988), Ásia, dos feitos que os Portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente, Décadas I-IV, Int. de António Baião, Coimbra: INCM.

CASTANHEDA, F. L. (1979), História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, 2 vols. Porto: Lello & Irmão Editores.

CORREIA, G. (1975), Lendas da Índia. Int. e revisão de Lopes de Almeida, 4 vols. Porto: Lello & Irmão Editores.

COUTO, D. do (1777), Ásia, dos feitos que os Portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente, Décadas IV-XII. No sítio da Biblioteca Nacional Digital, http:purl.pt.

OLIVEIRA, F. (2008), Arte da Guerra do Mar, Int. de António Silva Ribeiro, Lisboa: Edições Setenta.

VEGÉCIO, F. (2006), Tratado de Ciência Militar, Tradução, Estudo Introdutório e Notas de Adriaan de Man, Lisboa: Edições Sílabo.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA SECUNDÁRIA

 

BUESCU, A. I. (2008), D. João III, Lisboa: Temas e Debates.

CARMONA CENTENO, D. (2008), La epipólesis en la historiografía grecolatina, Tesis doctoral, Cáceres: Facultad de Filosofía y Letras.

COSTA RAMALHO, A. (1991-92), «Os humanistas e a divulgação dos Descobrimentos», Humanitas 43 e 44, 17-36.

HANSEN, M. H. (1993), “The Battle Exhortation in Ancient Historiography. Fact or Fiction?”, Historia 42, 161-180.

IGLESIAS ZOIDO, J. C. (2006), “El sistema de engarce narrativo de los discursos de Tucidides”, Talia Dixit 1, 1-28.

(2007), “The battle exhortation in Ancient Rhetoric”, Rhetorica 25, 141- 158.

(2008), “Retórica e Historiografia: la arenga militar”, en J. C. Iglesias Zoido (ed.), Retórica e Historiografia: el discurso militar en la historiografia desde la Antiguedad hasta el Renacimiento, Madrid: Ediciones Clásicas, pp. 19-60.

(2008b), “La arenga militar en la Historiografía griega: el modelo de Tucídides y sus antecedentes literarios y retóricos”, ed. IGLESIAS ZOIDO, 2008, Madrid, pp. 231-258.

IGLESIAS ZOIDO, J. C. (ED.) (2008), Retórica e Historiografia: el discurso militar en la historiografia desde la Antigüedad hasta el Renacimiento, Madrid: Ediciones Clásicas.

LE GOFF, J. (1984), “Memória/História”, Enciclopédia Einaudi, Vol. I, Lisboa: INCM.

LOPES, M. J. F. (2007), Estudo histórico, literário e linguístico da obra Commentarii rerum gestarum in Índia citra Gangem a Lusitanis anno 1538 de Damião de Góis, Tese de Doutoramento em Literatura Latina, Braga: Universidade Católica Portuguesa, Vol. I, pp. 55-326.

NAVARRO ANTOLÍN, F. (2000), “La retórica del discurso: la Cohortatio, Tradición clásica y pervivencia”, Cuadernos Filologia Clásica. Estudios Latinos 19, 79-124.

PANIAGUA AGUILAR, D. (2007), “La arenga militar desde la perspectiva de la tradición polemológica grecolatina”, Talia Dixit 2, 1- 25.

PINEDA, V. (2007), “La preceptiva historiográfica renacentista y la retórica de los discursos: antología de textos”, Talia dixit 2, 95-219.

PRITCHETT, W. K. (1994), ), “The General’s Exhortations in Greek Warfare”, en Essays in Greek History, Amsterdam: Giessen, pp. 27-109.

(2002), Ancient Greek Battle Speeches and a Palfrey, Amsterdam: Giessen.

SERRÃO, J. V. (1972), A Historiografia Portuguesa, Vol. I, Lisboa: Editorial Verbo, pp. 145-360.

(1980), “A expansão na historiografia”, História de Portugal (1495-1580), Vol. III, Lisboa: Editorial Verbo, pp. 188-196.

THOMAZ, L. F. F. R. (1998), De Ceuta a Timor, 2.ª edição, Lisboa: Difel. USHER, S. (1969), The Historians of Greece and Rome, Londres: Duckworth.

VALDEZ SANTOS, N. (2003), “A literatura militar clássica”, Anais da Academia Portuguesa de História, II Série 41, 153- 196.



[1] Como bibliografia fundamental para a correcta analise da presenca da arenga

militar desde a Antiguidade ate ao Renascimento, cf. IGLESIAS ZOIDO (ed) (2008).

[2] BARROS, Ásia, Prólogo da Década III.

[3] Cf. CARMONA CENTENO (2008: 42).

[4] Cf. IGLESIAS ZOIDO (2007) e (2008a: 39).

[5] A presente seccao dedicada a analise dos engarces e elaborada a partir do IGLESIAS

ZOIDO (2006).

[6] G. CORREIA, Lendas Da India, Liv. I, «Continuacao do terceiro ano do Vice-Rei Dom

Francisco. Armada de Jorge de Aguiar. Ano de 508». Cap. IV.

[7] G. CORREIA, Lendas Da Índia, Liv. II, «Afonso de Albuquerque, segundo governador». Cap. XVI.

[8] G. CORREIA, Lendas da Índia, Liv. I, «Continuação do terceiro ano do Vice-rei Dom Francisco. Armada de Jorge de Aguiar. Ano de 508.» Cap. III

[9] Cf. COUTO, Década VII da Ásia, Liv. I, Cap. V: «Só hum Francisco Anes, da obrigação de Fernão de Sousa Távora, requereo e bradou…»

[10] Cf. PANIAGUA AGUILAR (2007: 5-6)

[11] G. CORREIA, Lendas da Índia, Liv. III, «Lopo Vaz de Sampayo. Governador Provisório», Cap. I

[12] G. CORREIA, Lendas da Índia, Liv. III, «Lenda do Governador Nuno da Cunha….» Cap. XXI

[13] Cf. CARMONA CENTENO (2008: 58).

[14] Cf. CARMONA CENTENO (2008: 384).

[15] G. CORREIA, Lendas da Índia, Liv. III, «Lopo Vaz de Sampayo. Governador Provisório», Cap. I

[16] J. de BARROS, Asia, II Decada, Liv. III, Cap. III

[17] Cf. IGLESIAS ZOIDO (2008b: 241). Cf. introdução de discursos na historiografia quinhentista en PINEDA (2007).

[18] Cf. IGLESIAS ZOIDO (2008b: 244)

[19] J. DE BARROS, Asia, II Decada, Liv. III, Cap. III

[20] CASTANHEDA, História, Liv. I, Cap. LXVI

[21] G. CORREIA, Lendas da Índia, Liv. I, «Continuação do terceiro ano do Vice-rei D. Francisco. Armada de Jorge de Aguiar. Ano de 508.» Cap. III

[22] CASTANHEDA, Historia... Liv.III, Cap. CV