Luis Miguel Henriques
A arenga naval na historiografia ultramarina portuguesa do século XVI
ABSTRACT: This paper deals with the
harangue used in a
naval context, as presented
in 16th-century Portuguese overseas historical writing.
The first part
of the article analyses the
way in which such speeches
can be integrated – by means of settings – in the narrative discourse. The second part identifies in the harangues different
rhetorical topoi and
their functions. In short, the intention of this work
is to characterize the standard harangue used by captains
and Portuguese governors
before a naval battle in the Indian
Ocean.
Keywords: harangue; settings;
rhetorical topoi; Portuguese history writing; 16th Century; naval battle.
RESUMO: O presente artigo
aborda a importância da arenga
militar pronunciada em contexto naval na historiografia ultramarina portuguesa do século XVI. Analisa, em primeiro
lugar, o modo como estes discursos
se integram – através
dos engarces – no fio narrativo, dedicando-se, depois, à identificação dos diferentes topoi retóricos e respectivas funções. Em suma, com este artigo,
pretende-se reconstituir a arenga-tipo proclamada pelos capitães e governadores portugueses, antes de uma batalha
naval, no Oceano Índico.
Palavras-chave: arenga; engarces; topoi retóricos; historiografia portuguesa; século
XVI; batalha naval.
Fecha de recepción: 11 Julio de de 2009.
Fecha de aceptación: 15 de Septiembre de 2009.
1. Contextualização temática
Uma
vez que neste ano de 2009 se comemoram
os 500 anos daquela que foi a mais emblemática batalha naval empreendida pela marinha de guerra portuguesa – na circunstância a batalha naval de Diu – decidimos elaborar o presente
estudo sobre a arenga militar em cenário naval, não só naquela
batalha, mas em todas as que seleccionámos a partir da chamada historiografia ultramarina quinhentista, nas obras de João de Barros, Castanheda, Gaspar Correia e Diogo do Couto. Nesse sentido,
este artigo tem por
objectivo principal analisar, em primeiro plano, o modo como estes
discursos se integram e harmonizam com a narração dos factos, particularizando o papel que os engarces
desempenham na consecução dessa dita harmonia.[1] Em seguida, identificaremos e interpretaremos a presença
dos mais relevantes topoi retóricos
no interior das arengas,
estabelecendo a sua relação
com o contexto histórico-cultural envolvente. Procuramos, pois, apresentar aquela
que era a arenga-tipo pronunciada pelos comandantes portugueses nos momentos
que antecediam uma batalha naval no Oceano
Índico, presentes na historiografia portuguesa ultramarina do século
XVI. Nessa batalha naval do dia 3 de Fevereiro de 1509, como nas mais de 300 outras
batalhas que os portugueses
travaram ao longo do século XVI, vários
factores contribuíram para a vitória. Aqui e agora cumpre apenas falar de um: o factor humano. Pela leitura das crónicas,
vemos que a predisposição dos portugueses para a guerra associada
a um comando assertivo era o verdadeiro fiel da balança. Quantas vezes, punhados de homens,
em extrema dificuldade e aperto, graças à capacidade retórica do capitão,
inverteram um destino já traçado. Nesse sentido, a historiografia ultramarina do século
XVI é pródiga na inclusão de arengas
militares, intercalando-as amiúde no decurso do relato narrativo, mormente nos momentos que antecedem
confrontos navais
decisivos. Naturalmente que a presença da arenga na historiografia nos leva a uma questão, muito debatida entre especialistas, sobre a realidade ou a invenção da arenga historiográfica. Não pretendemos aqui dissecar
o problema ou aduzir interpretações, mas tão-só dar conta do seu
estado actual. Hansen (1993) apresenta a arenga como
uma criação literária posterior, fruto do labor do historiador, fundamentando a sua decisão no facto de a arenga real nunca poder ir além
de
algumas poucas exortações para que as mesmas fossem ouvidas pelas tropas. Pritchett
(1994 e 2002) ataca
esta posição, defendendo a historicidade das arengas,
assumindo-as como um testemunho mais ou menos fiel daquilo que efectivamente fora declarado, dependendo
do grau de proximidade do historiador face a esse mesmo discurso, opondo-se, pois, a que as arengas
sejam discursos completamente ficcionados, admitindo, contudo, a sua transformação em modelo
literário. Quanto a nós, pensamos
que os historiadores ao introduzirem estas arengas em
momentos cruciais, procuraram explicar
ao narratário-leitor, como um grupo reduzido
de homens pode vencer, num momento
decisivo, uma armada inimiga com um número muito superior
de efectivos. A arenga,
a capacidade retórica
de um capitão
para animar as suas tropas, assume-se, pois, como um elemento equilibrador, dentro de um quadro
de coerência, sem a qual a vitória
seria entendida como pouco credível e certamente inverosímil. Paralelamente, e como veremos
no penúltimo ponto deste artigo, a inclusão
da arenga na narração
dos feitos obedece, também, a uma estratégia retórica por parte do historiador, uma vez que ele próprio a aproveita para veicular
determinadas orientações ideológicas.
2. A Historiografia quinhentista
Quando há pouco nos referíamos que os historiadores de quinhentos incluíram a arenga no decurso da narração, temos
de entender esse facto num quadro cultural
mais amplo. Claramente, essa valorização da retórica compreende-se à luz dos ideais
humanistas que então enformavam a historiografia quinhentista. O que há de novo relativamente ao período medieval, é que para além do seu carácter
mimético de preservar um passado heróico, a obra historiográfica é agora, mais do que nunca, como afirma Iglesias
Zoido (2008: 20), una composición literaria
elevada y erudita, em que a maneira de contar, o estilo são sobrevalorizados. Tanto assim é, que o próprio João de Barros considera a História, à maneira de Tito Lívio,
um ramo da Retórica: tem tanto poder a força da eloquência, que mais doce, e acepta he
na orelha, e no animo huma fabula composta com decoro, que lhe convem, que huma verdade
sem ordem, e sem ornato,
que he a forma natural
della.[2] Esta conexão
entre a História e a Retórica levada a cabo pelos
historiadores quinhentistas tem um propósito claro: tendo ao seu redor uma panóplia vasta de acontecimentos extraordinários, que iam desde as navegações para zonas do globo até há pouco desconhecidas, até feitos de armas inauditos
(por exemplo a batalha naval de Diu), só por meio de um estilo elevado, portanto
fazendo uso da Retórica, poderiam
imortalizar na História, a grandiosidade da gesta nacional. Enfim, trata-se do tópico de numa mão a espada e noutra a pena. Com esta conjugação de esforços,
o objectivo a atingir
seria o de mostrar ao mundo que
os feitos dos portugueses superaram tudo o que gregos e latinos haviam realizado e imortalizado. Ao lermos a historiografia ultramarina, este tópico da superação
– como o denominaram alguns estudiosos – surge a cada passo. Para todos os efeitos,
o uso e a disseminação da arenga pela historiografia, quer como processo
de emulação, quer como processo retórico serve indubitavelmente todos estes objectivos.
Por outro lado, os cronistas portugueses
de quinhentos
viram também na
História, uma vocação moralista, como escreve, a esse propósito, João de Barros, no prólogo da Década I da Ásia:
Fica daqui a cada huũ
de nós hũa natural e justa obrigaçam, que assy devemos
ser diligentes e solícitos
em guardar em futuro nossas obras pera com ellas aproveitarmos em bom exemplo
[…]. E vendo eu que nesta diligencia dencomendar as cousas a custódia
das letras (cõservadoras de todalas
obras) a naçam Portugues
é tam descuydada de sy, quam prompta e diligente
em os feitos que lhe competem
por milicia, e que mais se preza de fazer que dizer, quis nesta parte usar ante do ofício
de estrangeiro, que da condiçam de natural.
Neste pequeno
excerto de Barros, podemos compreender que a História
é entendida como um conceito
moral e pragmático, espelho de virtudes
para as gerações futuras. A «custódia das letras», isto é, a História, está incumbida de memorar
os bons feitos passados, a fim de servirem de exemplo e de imitação, de acordo com a tradição
clássica. Esta função
pragmática da História implica,
por outro lado, uma obrigação: contar a verdade. Contudo, a verdade, em alguns casos, entra em rota de colisão com o carácter oficial
tanto das crónicas
como do cronista, pois a história
do Renascimento está estreitamente dependente dos interesses sociais
e políticos dominantes, neste caso do Estado, como declara Le Goff (1984: 226). O caso de Barros é revelador dessa dificuldade: embora
revele, no prólogo
da Década I, seguir um projecto de imparcialidade, e de revelar
a verdade, já no prólogo
da Década III, declara:
a
primeira e mais principal parte da historia
e é a verdade della, e porẽ em algũas cousas nam ha de ser tanta que se diga por ella o dito da muyta justiça
que fica em crueldade, principalmẽte nas cousas que tratam da infamia dalguem
ainda que verdade sejam. Donde se pode concluir
que do conceito de verdade devem ser
omissas as más acções. Esta aparente
contradição é absolvida
por Serrão (1972: 223) afirmado
que Barros, na esteira de Tito Lívio, queria apresentar a História pátria como um exemplo
de moral, escrevendo
em «tom heróico» de acordo
com a expectativa da recepção
das classes sociais
dominantes. Em todo o caso sabemos que outros cronistas, porque não omitiram
alguns factos ou minguaram nos elogios,
sofreram pressões, de tal maneira
que algumas obras levaram sumiço, enquanto outras se mantiveram manuscritas até ao século XIX, o caso das Lendas da Índia
de Gaspar Correia.
Finalmente, uma outra linha de orientação, a historiografia de quinhentos é atravessada por uma indiscutível vibração de exaltação
patriótica. Esta exaltação épica dos feitos torna a História próxima da epopeia.
A necessidade da epopeia vinha já desde o século
anterior, e os historiadores de quinhentos procuraram
estabelecer um paralelismo entre os heróis da Antiguidade e os portugueses. Neste sentido, a epopeia
veio a lume com Os Lusíadas, 1572, de Luís de Camões.
Já aqui aludimos
ao facto de vários cronistas se inquietarem por os portugueses cuidarem
muito em fazer e pouco em
registar. Contudo, Valdez
dos Santos (2003: 157) declara que Portugal,
durante o Renascimento, procurou anunciar a sua História
ao mundo, pelo que terão sido produzidas entre 1300 e 1400 obras, a maioria
de cariz militar-marítimo, embora nem todas tenham chegado até nós. Estas obras terão sido, maioritariamente, escritas em vernáculo e algumas
delas foram objecto
de traduções em várias línguas. Por outro lado, portugueses no estrangeiro, como Damião de Góis, usando o Latim,
anunciaram à Europa os feitos da Ásia.
3. Corpus
Para o estudo retórico
das arengas navais, de entre a vasta produção
historiográfica do século XVI, focámo-nos exclusivamente nas extensas
obras dos, nas palavras de Veríssimo
Serrão (1973: 147), autores ultramarinos do oriente. De facto, o estado português
da Índia, mais do que possessões territoriais, assentava a sua manutenção no controlo de rotas comerciais marítimas, acerrimamente defendidas
por uma poderosa e dispersa
marinha de guerra, que despertava o sentimento de grandeza de um pequeno povo. Assim,
nas obras destes cronistas, praticamente todas as páginas estão ocupadas
com os feitos do oriente que satisfazem
amplamente a sua curiosidade histórica. Na verdade, o Portugal do lado de cá passa ali quase despercebido, por vezes apenas referido, quando as decisões
tomadas aqui, tinham
ali implicações. Vejamos agora, com maior proximidade, alguns elementos biográficos sobre estes historiadores.
De acordo com Serrão
(1972) João de Barros (1496-1570), embora nunca tenha estado ou viajado até à Índia, no desempenho das suas funções
como feitor da Casa da Índia, teve a oportunidade de consultar
todos os documentos daquele
arquivo, mas também de escutar
o relato dos marinheiros que continuamente ali aportavam, pelo que recebia em primeira-mão muito do que se passava no Índico.
Do seu vasto edifício
histórico, constavam três grandes capítulos: Conquista, (subdividida em Europa, África, Ásia e Vera Cruz), Navegação e Comércio, tendo redigido anteriormente uma Geografia. Desta obra gigantesca, hoje apenas conhecemos as quatro primeiras
Décadas da Ásia. O título e a ideologia demonstram
a clara influência de Tito Lívio, pois procurava fazer da história uma lição
moral para as futuras
gerações, ainda que isso implicasse omitir alguns actos menos dignos. A Ásia é pois uma espécie
de epopeia dos sucessos do oriente,
e que se enquadra no ambiente geral da euforia da expansão
que ainda se vivia nos meados da centúria.
As primeiras três décadas, saíram respectivamente em 1552, 1553 e 1563. A última só foi publicada em 1615. Cobrem a presença
lusa no oriente entre 1497 e 1539. Como não esteve no oriente,
a sua obra perde na cor local, mas ganha nas notas sobre geografia, batalhas e feitos militares
e nas alocuções solenes das personagens. Como afirma Serrão (1980:188), Barros sentia que a verdadeira história devia ser narrada num quadro de beleza literária, para dar ao assunto o tom heróico da epopeia.
Para muitos é considerado o “Tito Lívio português”.
Fernão Lopes de Castanheda (1500-1559) fez apenas
os estudos menores
e em 1528 partiu para a Índia. Aí colheu elementos para a edificação da sua História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, que
viria a terminar na pátria em 1539. Em 1547, exerce funções de bedel e guarda-mor da livraria da Universidade de Coimbra. De acordo com Serrão (1972: 229):
a obra de Castanheda é a mais completa fonte sobre os primeiros cinquenta
anos da dominação portuguesa na Índia e o seu autor um dos maiores
do nosso século XVI. A sua erudição
terá provindo da escola da vida, particularmente dos contactos que estabeleceu no oriente com muitos dos protagonistas, mas também da convivência com os humanistas da Universidade de Coimbra e do Colégio das Artes. Escrevendo na primeira metade do século XVI, sente ainda vibrar o clima épico que se vive, mostra o orgulho de ser português,
e no prólogo do Livro III declara que, embora não possuindo o engenho de Homero e não chegar à eloquência de Tito Lívio, sente que as façanhas dos lusitanos na Índia se elevam
acima das que aqueles
autores clássicos escreveram. Muitas alusões clássicas, aliás, irrompem do seu arrazoado
histórico, todavia a sua prosa não se compara
à erudição da de Barros. A História completa contaria
10 livros, mas apenas
8 foram publicados. O Livro I foi publicado em 1551, enquanto os dois livros seguintes foram publicados nos dois anos subsequentes. Com razoável
periodicidade, até 1561 são publicados os Livros IV-VIII. Os Livros IX e X não receberam
permissão de impressão
por influência de certas famílias
pois não reconheciam
ali o mérito de que se julgavam
ser merecedoras. Uma última nota para o facto de a obra de Castanheda ter alcançado
rapidamente uma enorme popularidade na
Europa, pois logo em 1553
foi publicada em Paris uma tradução francesa do seu primeiro livro, repetida
no ano seguinte. Teve a História também traduções espanhola (1554), italiana (1577) e inglesa
(1582).
Gaspar Correia (1492-1563) terá partido para a Índia em 1512, onde desempenhou o cargo de secretário do Vice-Rei Afonso de Albuquerque, que lhe terá permitido
contactar com altas figuras
do estado. Tal ofício
conferiu-lhe a possibilidade de reunir imensa
informação para a sua obra, Lendas da Índia. Terá iniciado a sua redacção
já no Outono da vida, embora
se tenha servido dos informes
que fora reunindo
ao longo da vida.
As Lendas são uma narrativa
objectiva dos acontecimentos da primeira
metade do século XVI. Embora não tenha adquirido erudição, compensou esse défice
com os saberes de homem experiente. Assumindo-se não
como cronista régio, mas sim como narrador dos feitos ultramarinos, critica
aqueles que escrevem
longe dos factos,
por documentos ou por testemunho de terceiros
como funcionários régios, numa clara crítica a Damião de Góis e a João de Barros. Vira crescer um império,
que agora na segunda
metade do século ameaçava os primeiros sinais de decadência. Defensor da objectividade, não calou
a sua dor, escrevendo os bons, mas também os maus feitos, afastando-se deste modo do conceito
de Barros. A obra, composta por quatro volumes, cujos manuscritos sofreram algumas atribulações
e pressões, só conheceu impressão no século XIX, entre 1858 e 1866.
Por
fim, Diogo do Couto, o continuador da Ásia iniciada por João de Barros. Reatou a narração
dos feitos a partir de 1526, e continua-a até 1600. Nasceu
em 1542, estudou
Latim, Retórica e Filosofia, cujos reflexos marcam a sua obra. Há uma profusão
de leituras de autores antigos
e modernos. Dos clássicos, destacam-se Homero, Virgílio, Galeno, Ptolomeu, Arriano, Quinto Cúrcio,
Plínio, César, Séneca e Tito Lívio. Refere
espanhóis como Santo Isidro de Sevilha
e González de Clavijo.
Em 1559, seguindo a carreira
das armas, parte para o oriente, onde falece
em 1616. Em vida, Couto conseguiu publicar as Décadas IV, V, VI, VII, respectivamente em 1602, 1612,
1614 e 1616, que cobrem os acontecimentos entre 1526 e 1564. As quatro décadas seguintes, deixou-as manuscritas, sofrendo sortes diferentes: a VIII e a IX tiveram
de ser
refundidas pelo próprio; a X manteve-se inédita
até 1777; a XI desapareceu conhecendo-se hoje um epítome
e a XII ficou incompleta. Terá começado a escrever
as suas Décadas por volta de 1591, quando assumiu a dupla função de cronista e guarda-mor da Torre do Tombo de Goa. Associando, como desejava,
o seu nome ao de Barros na redacção desta monumental obra, existem contudo diferenças entre ambos: enquanto Barros exala a euforia da expansão,
Couto observa, com angústia,
a decadência do império, provocada pela incúria da administração e pela ameaça da Holanda aos interesses lusos no oriente.
Se na sua obra louva os feitos
heróicos de alguns, não deixa de culpar os vice-reis e fidalgos que não foram dignos
da memória dos antepassados, denunciando
os males do império. Seguiu sempre
a via da verdade
e da objectividade.
Assim, após o levantamento dos discursos em todas estas obras,
contabilizámos cerca de quatro dezenas e meia de arengas
navais, sendo Castanheda o mais representativo com 52% dos discursos, ao passo que no outro extremo, Barros contribui com 2 discursos. Cremos que para a expressão de Castanheda contribuem dois factores: desde logo, porque a base de recrutamento em Castanheda é superior
à dos restantes, 8 livros
integrais; em segundo
lugar, a proximidade temporal com que escreve
e o contacto com testemunhos de protagonistas, sobretudo fidalgos e capitães,
que a sua condição
social facilitava, como afirma no prólogo do Livro III, permitiram-lhe elaborar estas arengas, num clima
ainda de exaltação patriótica. Outro facto que sobressai
da análise dos dados, é que, ao contrário da historiografia latina cujos autores
preferem o estilo indirecto,[3] no presente corpus, cerca de 70% das arengas estão em estilo directo.
Pensamos que para essa cifra contribuiu o advento
do Humanismo, que ao
contrário do que seria de esperar,
levou a que um grupo de autores
prescindisse de escrever em Latim,
para escrever exclusivamente em vernáculo. Poetas e historiadores usaram o Português
como única língua
pois admitiram que a sua língua estava apta suficientemente para relatar os feitos
da história pátria. Ora, quer em termos sintácticos, quer em termos
de impacto
emotivo sobre o leitor,
o estilo directo em Português adquire maior vivacidade. Acresce que, um discurso em estilo directo proporciona ao narrador
veicular uma determinada ideologia sem que o mesmo fique demasiadamente comprometido com a mesma.
Para encerrarmos este ponto, falta-nos tratar de uma questão de importância crucial: identificar o tipo ou tipos de arengas que são privilegiados no corpus em análise. Dada a sua heterogeneidade compositiva, a crítica
especializada ainda não reuniu consenso em torno de uma tipologia estável de arengas
para a historiografia clássica, tal como afirma Iglesias Zoido (2008a: 38) no ha de extrañar
que la crítica haya planteado
diferentes posibilidades de clasificasión tipológica. Este mesmo estudioso, na continuação daquela
sua investigação, apresenta-nos as mais significativas propostas de classificação tipológica que ao largo do século XX foram surgindo
para a historiografia clássica. Assim Usher (1969) toma como critério, a moral das tropas, para inventariar três tipos de arengas.
Claro que diante de diferentes estados anímicos, o general
há-de certamente também pronunciar arengas com conteúdos
diversos, teoria que não reúne consenso
por parte dos historiadores. A proposta
de Hansen (1993),
mais complexa, uma vez que cruza
vários vectores, como o tipo de emissor, situação do receptor,
meio de transmissão da exortação
e o contexto físico em que é pronunciada, apresenta quatro diferentes tipos de arengas
clássicas. Apesar de mais completo,
como aponta Iglesias Zoido (2008a: 39) não consegue
compreender nem explicar
a multiplicidade de discursos
exortativos.
Postas as coisas
nestes termos, temos
de analisar cada arenga na sua individualidade, realizar un estudio más profundo
de las características y contexto
de cada una de las arengas insertas
en las obras historiográficas para determinar con claridad su tipología, lo que nos muestra un amplio abanico
de posibilidades desde
el punto de vista pragmático, atendiendo al momento
en que se pronuncia la arenga.[4] Assim sendo, temos de considerar as arengas pronunciadas antes, durante e depois da batalha e, dependendo dessa questão temporal, também os discursos variarão entre maior os menor extensão e conteúdo. Um discurso prévio à batalha,
apresenta certamente uma componente didáctica mais ampla do
que a componente exortativa, ao invés de uma arenga
pronunciada no decurso
da batalha, que terá de ser breve e fortemente exortativa. Uma arenga
pronunciada após uma batalha terá um conteúdo
epidíctico, louvor aos vencedores e consolação aos vencidos.
Partindo, pois, destas linhas orientadoras, atendendo sobretudo à individualidade do momento e do contexto
em que cada uma das arengas
é pronunciada, vamos, agora, confrontá-las com o corpus seleccionado de arengas
navais na historiografia portuguesa quinhentista, a fim de identificarmos o tipo ou tipos de arengas mais frequentes. Observando pois o momento em que são pronunciadas, chamemos-lhe o critério
cronológico, na sua larga maioria, as arengas são pronunciadas pelo governador ou capitão-mor da armada antes de dar batalha,
por vezes um ou mais dias antes da
mesma e por arrastamento, numa coordenada diferente daquela em que se vai desenvolver o confronto, pois a imprevisibilidade do inimigo,
das correntes marítimas e dos ventos poderiam levar à dispersão da armada e à inviabilidade da arenga.
Quanto ao interlocutor, a arenga era geralmente pronunciada na nau principal pelo capitão-mor diante dos
capitães das restantes embarcações e de outras
pessoas influentes, que por sua vez, deduzimos
nós, reproduziriam na sua embarcação, o discurso
ouvido. Relativamente à finalidade da arenga,
ela visa sobretudo
persuadir os oficiais a enfrentarem o inimigo
sem hesitações. Pelo exposto,
daqui decorre que estas arengas desenvolvem amplamente a componente explicativa, com tópoi retóricos distintos, como adiante veremos, que vão desde a explicação da estratégia até à vantagem
de se efectuar
aquele embate, e, onde, a componente exortativa se apresenta proporcionalmente reduzida.
Esta é arenga mais comum.
No corpus, podemos
também encontrar uma arenga breve
pronunciada durante uma batalha
naval, dois casos
de epipólesis, que no ponto seguinte
exploraremos, bem como algumas
arengas em cuja finalidade não é persuadir, mas sim dissuadir a temeridade de alguns de perigarem
a vida de todos.
Como assinala Iglesias Zoido (2008a: 40), para a formulação de uma tipologia de arengas, além de se terem em linha de conta critérios
literários, retóricos e contextuais, são de valor imprescindível os engarces narrativos,
pois oferecem-nos informações determinantes para a determinação do tipo de discurso com estamos
a lidar. Ora, é precisamente isso que vamos ver já de seguida.
4. Os engarces
É do conhecimento dos especialistas em historiografia que se deve a Tucídides o primeiro
capítulo metodológico em que os feitos (érga) e as palavras (lógoi) surgem num plano de igualdade. Tal equidade determina que a partir
daí os discursos
não se entendam como subordinados à narração,
mas que interagem
com a mesma. Ora, é precisamente o engarce o processo
empregado pelo historiador para a integração plena das duas componentes.[5]
Entende-se por engarce (setting) as palavras
e as frases que Tucídides
empregara para introduzir os discursos no fio da narrativa
histórica. São uma espécie de cal, que em posição prévia e posterior
aos discursos tanto em estilo directo (oratio recta) como em estilo indirecto
(oratio obliqua), ligam naturalmente narração e discursos. Apesar de, como veremos, os engarces
se revelarem de importância crucial,
estas fórmulas de abertura
e encerramento dos discursos
ainda não obtiveram a atenção
devida por parte dos estudiosos. Efectivamente, se nas obras de Homero e Tucídides os engarces
já foram estudados, embora numa perspectiva de determinar a correspondência com aquilo
que realmente fora pronunciado, a verdade
é que é crucial alargar o âmbito de estudo aos engarces
de outras obras historiográficas e de outras épocas, daí a pertinência de estendermos essa análise à historiografia portuguesa ultramarina. Aí pretendemos identificar outras funções que, para além da questão
do realmente dito, estas fórmulas
desempenham na inserção dos discursos na narrativa.
Os
engarces não sendo,
pois, nem narração, nem discurso, ajudam
a ligação entre os dois. Advertem-nos de que a narração fica momentaneamente suspensa pela introdução
de um discurso, findo o qual, se retoma novamente
a narrativa. Tendo
em conta a essência deste artigo, consideramos aqui, unicamente, os engarces da arenga,
os quais revelam uma maior homogeneidade do que, por exemplo, os homónimos dos discursos deliberativos, devido aos diferentes contextos em que estes podem ser proclamados. Para além de outras funções, os engarces
das arengas,
podem possibilitar-nos, antecipadamente, informes sobre a natureza
do discurso, como veremos
adiante.
Descendo agora ao particular, e para a correcta aferição de todas as suas possibilidades, podemos identificar três níveis de engarces. O primeiro nível diz respeito àquelas palavras que tocam directamente no discurso. O segundo
nível é de maior amplitude, pois abrange a frase de abertura e de encerramento do discurso.
Finalmente, o terceiro nível, de dimensão
variável, uma vez que pode atingir a dimensão de um capítulo, só se
justifica mediante o discurso
que introduz, abordando
informações prévias sobre o próprio
discurso e sobre as suas consequências. Embora possam coexistir em simultâneo, a determinação do respectivo nível depende do grau de proximidade com o discurso.
a)
O primeiro nível de engarces compreende aquelas palavras que directamente contactam com o discurso.
Tais palavras são de importância crucial,
pois revelam a forma precisa como o historiador se dirige ao elemento discursivo, cuja presença
na trama narrativa é da sua responsabilidade. É por isso
que elas mesmas demonstram o posicionamento do autor face àquilo
que, por um lado, terá sido efectivamente pronunciado pelo orador,
ou, pelo contrário, poderá ser o resultado
do labor retórico
do seu autor, ou seja, são importantes para se avaliar
a questão da autenticidade do discurso.
Os mesmos termos podem também facultar-nos informações prévias sobre algumas características do próprio discurso.
Precisando o que afirmamos, de um modo geral, no corpus considerado, os engarces de primeiro nível pré-discursivos, indiferentemente de precederem discursos em estilo directo ou em estilo indirecto, são maioritariamente preenchidos por verba dicendi, especificamente o verbo dizer,
conjugado na 3.ª pessoa do pretérito perfeito
do Indicativo – disse (Castanheda, História, Lv. II, Cp. XXV), embora o gerúndio – dizendo (Castanheda, História, Lv. II, Cp. LIV), ocorra ocasionalmente. Casos há em que, entre aquela forma verbal e o início do discurso,
se encontra de permeio o deíctico pessoal complemento indirecto lhe/lhes: disse-lhes (sendo a posição
inversa também representativa «lhes disse»).
O deíctico possessivo «seus» ocorre também naquela posição,
sendo o seu referente
todos os elementos da armada ou apenas
os principais. Do exposto, podemos apresentar a fórmula
mais glosada pelos historiadores: verbo dizer + deíctico / deíctico + verbo dizer. Em Diogo do Couto, encontramos a especificação do alvo do discurso disse aos seus capitães
(Couto, Década VI, Lv. IX, Cp. III), assim como em Castanheda falou a toda a gente (Castanheda, História, Lv. I, Cp. LXVIII).
Quando se actualiza
a fórmula atrás enunciada, que é a mais frequente, deparamo-nos com um discurso de média/longa dimensão, cuja componente estratégica é mais extensa
do que a componente exortativa, ocupando esta, o fim do discurso.
Neste nível de engarces, a presença de outras palavras
em contacto com o discurso, transportam também
uma
diferente força elocutória. Isso
sucede quando o mesmo verbo dizer tem
como adjacentes os modificadores com grande
cólera (Couto, Década
VI, Lv. III, Cp. III) ou disse alto. O mesmo se verifica, quando o mesmo verbo dizer se encontra
precedido de verbos, como animar e esforçar, como por exemplo esforçou
dizendo (Castanheda, História, Lv. III, Cp. CLI). Uma variante
deste sintagma apresenta como núcleo,
não o verbo dizer, mas o verbo animar, resultando em animou para a peleja (Castanheda, História, Lv. III, Cp. CV). Significativa é a forma verbal onomatopaica bradou (Couto, Década VII, Lv. I, Cp. V), com uma presença no corpus discursivo. Como se pode depreender, trata-se de formas verbais
que emprestam ao engarce
um aspecto
exortativo, e, que, por antecipação, nos faz entrever um discurso
breve, em que a componente parenética assume
um papel de destaque.
Com muita nitidez,
nestas arengas, os topoi dos âmbitos do do honestum
/ dignum assumem uma grande relevância, o que demonstra claramente
uma
relação estreita
entre o tipo de engarce seleccionado e o discurso produzido.
Se
considerarmos agora a(s) palavra(s) que estão em contexto pós- discursivo e que se referem
ao próprio discurso,
verificamos que, nas poucas
vezes em que isso sucede, e independentemente dos verba dicendi anteriormente seleccionados no
engarce inicial, encontramos também um
deíctico, isto, que podemos
classificar de “neutro”. Este deíctico surge integrado em sintagmas
como E dizendo
isto (Castanheda, História, Lv. II, Cp. XXVI) ou Isto assentado
(Castanheda, História, Lv. V, Cp. XXXV) o qual revela um certo distanciamento do autor face àquilo que efectivamente terá sido pronunciado. Esta ideia transparece também do engarce: e assi outras
cousas (Castanheda, História,
Lv. III, Cp. CVI) apenso a uma arenga em estilo indirecto, em que o historiador nos transmite apenas as ideias que considera
fundamentais, optando por resumir as restantes
neste engarce. Pensamos, pois que estas fórmulas
são equivalentes àquela que Iglesias
Zoido (2006: 6) assinala
nos discursos de Tucídides, na circunstância (toiauta). Se a estes engarces finais, somarmos
os engarces iniciais,
muito repetidos e de significação muito geral, preenchidos pelo verbo dizer, parece-nos que o emprego de tais palavras
e não de outras mais precisas,
denota um certo distanciamento entre aquilo que efectivamente
terá sido pronunciado pelos oradores
e o que nos comunicam os cronistas. Face ao exposto, poderemos afirmar, com uma certa segurança, que os autores tão-só nos transmitiram aquelas coisas
que julgaram convenientemente ter sido pronunciados naqueles momentos,
sendo, portanto, os discursos fruto de elaboração retórica posterior. Esta conclusão é corroborada pelo facto de uma mesma arenga apresentar versões diferentes em historiadores distintos. Assim, antes da batalha naval de Diu, a fim de adestrar previamente os seus homens, Francisco de Almeida decida atacar a cidade de Dabul. Isso mesmo comunica aos principais, por meio de uma arenga, cujas extensão e elaboração retórico- linguística são dissemelhantes em Castanheda (História, Lv. II, Cp. XCVI) e em João de Barros (Ásia, Década
II, LV. III, Cp. III) embora possa haver uma partilha
de tópoi retóricos. Em face do exposto, parece-nos pois que os discursos inseridos nos relatos históricos, parecem-nos mais fruto da reelaboração e do talento retórico dos diversos autores.
b)
O segundo nível de engarces é mais extenso
do que o anterior
visto que o escopo recai sobre as frases
totais anteriores e posteriores
ao discurso. Na circunstância, a maior extensão
corresponde também uma maior heterogeneidade. Em todo o caso, a frase prévia assume maior preponderância, uma vez que
pode implicar o desenvolvimento ideológico e organizativo do discurso,
enquanto a frase final apresenta
maior linearidade ao nível do conteúdo.
Vejamos, então, algumas das
funções desempenhadas por este nível de engarces.
Delimitação do âmbito oratório
do discurso. Uma função deste segundo nível é
a de nos transmitir a identificação e delimitação do receptor do discurso. Contudo,
antes de prosseguirmos, queremos aqui trazer
à colação umas pequenas considerações sobre a organização hierárquica de uma armada. Recordemos que neste século
XVI, a guerra passou a contar
com uma componente pirobalística, cujas respectivas armas de fogo passaram a integrar a estrutura dos navios. As naus e os galeões portugueses tornaram- se autênticas
fortalezas navais, que poderiam albergar
centenas de homens.
Uns estavam ligados
à marinhagem, enquanto
outros eram a força militar.
De modo que uma armada, compreendendo várias e distintas
embarcações, podia atingir
milhares de homens.
Quanto à hierarquia de comando, de certa
forma, reproduzia o que se passava em terra. Assim,
cada armada tinha à cabeça
um responsável máximo, que era o capitão-mor, ao qual obedeciam
os restantes homens,
pois tinha poder
para mandar, julgar e castigar, até pena capital
(Oliveira, 1555: II, 12). Por sua vez, cada embarcação tinha respectivamente um capitão. Regressando à delimitação do horizonte discursivo, na generalidade das arengas tanto em estilo
directo como em estilo indirecto, o destinatário colectivo
das mesmas vem claramente identificado, o que corresponde, certamente a um esforço de exactidão por parte dos historiadores. Assim, o capitão-mor da armada chama ou ajunta na sua nau os capitães das restantes embarcações, bem como fidalgos
e pessoa de igualha importância, ou seja o «conselho». Trata-se
pois de uma assembleia restrita, composta por algumas
dezenas de pessoas,
a quem o capitão-mor costuma
arengar, depreendendo-se que depois, por sua vez, cada um destes oficiais
reproduza as palavras
do capitão-mor diante
dos seus subalternos. Em contexto naval, as arengas
dirigidas a milhares
de homens não se verificam, porque a logística
as torna inviáveis. Há no entanto
um caso interessante, em que o Vice-Rei
da Índia, simultaneamente capitão-mor, manda que o seu discurso escrito seja lido em todas as embarcações em presença de toda a gente,
prometendo após a vitória na batalha de Diu, benesses
e honras para todos.
[6]
De modo que o exemplo seguinte
é um caso concludente e recorrente do que
temos estado a afirmar: E o Governador pôs sua bandeyra
na quadra, a que logo vierão os capitães,
e fidalgos e gente d’armada,
e o Governador na tolda.[7] Para além da assembleia-alvo do discurso, este nível de engarce informa-nos do meio comunicação visual usado pelo capitão-mor para a convocação do conselho, que passava pela colocação
de uma bandeira na quadra da nau, local certamente visível
das restantes embarcações. Casos há em que o capitão envia também um bergantim em direcção às naus com a missão de fazer a mesma convocatória. Reunidos
os capitães na nau do capitão-mor, este arengava aos seus homens em locais precisos da embarcação, que poderiam ser a tolda, como no exemplo anterior,
ou o chapitéu. Naturalmente, que o orador ocuparia um lugar à frente de todos, de forma que o pudessem
bem ouvir, como se observa
no engarce de Correia: Antre todos assentado
na tolda, o Visorey a todos lhe fez esta fala.[8]
Identificação e caracterização do orador. Sempre
que algum orador pronuncia uma arenga, é claramente identificado e nomeado pelos
historiadores, esforço que o historiador faz para manter o nível de precisão
histórica. De entre os oradores, destacam-se, por uma ordem
crescente de frequência, militares
que da turba anónima praticam
actos de heroísmo
(deixando, deste modo de ser anónimos, porque o historiador, além de nos facultar o nome, diz-nos quem era o seu superior[9],
e por vezes notas sobre a sua ascendência), membros do clero que exortam à guerra contra os inimigos da fé, capitães
de navios, e, naturalmente, capitães-mores, cargo, por vezes, concomitantemente desempenhado pelo governador/vice-rei. Face ao exposto,
naturalmente que o elemento que na historiografia ultramarina portuguesa, com maior frequência arenga à marinhagem é o capitão
da armada. Estes capitães
revelaram qualidades fundamentais para dirigirem algumas
centenas ou milhares
de homens. No âmbito
específico da temática
que aqui nos ocupamos, é evidente que um dos requisitos fundamentais para o cabal desempenho do cargo de capitão
de armada ou de exército
seria o domínio
da arte retórica
para arengar às tropas. Não é por acaso que
uma das primeiras obras da
literatura de re militari, o tratado de Onassandro, Στρατηγικός, escrito por volta do ano 58, que aborda as qualidades que um general devia reunir, segundo a tradição
grega, identifica a capacidade de falar em público como uma das fundamentais, a que se juntam, entre outras, a prudência, a sobriedade, a austeridade, a inteligência.[10] É que do domínio da primeira
só poderão advir benefícios. Num outro importante tratado de ciência militar,
Epitoma rei militaris, escrito por Vegécio, no século IV, este tratadista renova no capítulo IX do livro 3 que o general
deve animar os soldados desmoralizados por meio de uma arenga, donde se depreende que deve ter conhecimentos sobre retórica. No mesmo capítulo declara que o mesmo general deve ser vigilante, sóbrio e prudente,
para, já no capítulo
seguinte, aconselhar o general a mostra-se
autoritário e severo, criando
a imagem de um líder implacável para aqueles
que quebram as regras marciais. Enfim, deve ser um líder bem preparado, pois só assim poderá inspirar confiança em todos os soldados
para a luta e não para a fuga. Se avançarmos, agora, até ao século XVI português, deparamo-nos com o primeiro
tratado mundial que aborda
a matéria que aqui estamos a tratar: a batalha naval. Trata-se da Arte da Guerra do Mar de Fernando
de Oliveira, publicada
em 1555. É um tratado
que se antecipa
relativamente aos dias de hoje, em matérias
das ciências política e náutica,
do direito internacional, da estratégia, e que até então não haviam sido equacionados, e que, segundo os actuais especialistas, continuam em vigor.
Por mais de uma vez, Oliveira se revela conhecedor e seguidor
de algumas matérias
de Vegécio, embora
afirme no prólogo, a propósito
da guerra do mar: Da qual
nenhum autor, que eu sayba,
escreveo ãtes dagora arte nem documentos,
ou
se alguem della escreveo confesso que nam veo a minha noticia sua escritura, soomente de Vegecio
cousa pouca. Em certos
assuntos, Oliveira capta, actualiza e adapta
conceitos de Vegécio inerentes à actividade militar terrestre e transpõe-nos para a guerra no mar. Também ali podemos encontrar referências às capacidades de liderança e sagacidade que um capitão de mar deve deter.
Assim, no capítulo XIII, I Parte,
observamos uma certa similitude com Vegécio,
quando apõe a prudência
como uma das qualidades fundamentais do capitão:
cõvem que seja antre os outros como a cabeça antre os membros […] deve preceder em prudẽcia, esforço e muytas qualidades.[…] Deve ser o capitão
esperto no entender,
acautelado no fazer, manhanimo
em sofrer, animoso pera acometer. E mais adiante
Alẽ de ser o capitão sagaz, e esperto
pera conhecer o que tẽ nos homẽs, seja tambẽ capaz e nam arrebente cõ qualquer picadura, mas guardandosse dos sospeytos, espere tempo, cõ tanta fineza de saber (Oliveira, IX, II Parte). Pelo exposto, a virtude
essencial do capitão
é a sagacidade, a capacidade psicológica para lidar com os homens, perceber
os seus intentos. Deve também actuar com dissimulação, usando da fineza de saber. Embora Fernando
Oliveira seja omisso
relativamente a qualidades retóricas do
capitão, é de admitir que se
o capitão detiver
aquelas qualidades, naturalmente que será capaz de animar os seus homens.
Nos discursos que aqui estão em análise,
a frase prévia à
arenga orienta-se, de certa forma, pela Arte da Guerra do Mar, uma vez que também
não existem referências explícitas às capacidades retóricas do capitão
ou do orador de circunstância. Em todo o caso, algumas
daquelas virtudes
constantes do tratado
surgem com alguma regularidade nos engarces, contribuindo para a formação
de um retrato valorativo das personagens, denotando, por isso, a adesão do historiador a tais personagens. Como atrás dissemos, a dissimulação com aqueles
que lhe são contrários e suspeitos
é uma das qualidades que o capitão deve possuir, como se observa neste engarce
de Gaspar Correia:
mas o Governador, que entendia
suas falsas vontades, com muyta
dessimulação lhes respondeo.[11] Harmoniosamente trabalhado, é o engarce
seguinte: Luiz de Mello de Mendonça
muito seguro, e sem mostras de algum receio
(Couto, Década
VI, Lv. III, Cp. III) em que o exemplo da fortaleza
é importante para sossegar
os ânimos dos homens
no meio de uma cruel procela. Em síntese,
os engarces apresentam sobretudo virtudes de liderança, importantes para a mobilização dos ânimos marciais.
Informação sobre o tipo de arenga pronunciado. No decorrer
deste trabalho, já aludimos um pouco a esta questão,
embora o façamos agora com maior acuidade. Temos estado a ver que os engarces transportam consigo uma série de informantes úteis para a compreensão da própria
arenga. Como escreve Iglesias Zoido (2006:17), existe uma estreita conexão entre um determinado tipo de engarces e a natureza
da própria arenga,
porque não se pronuncia o mesmo tipo de arengas em contextos distintos. Na verdade, enquanto um determinado tipo de arengas
desenvolve preferentemente a componente argumentativa (didaché), outro tipo de arengas
amplia a componente exortativa (paraínesis), pelo que a informação que os engarces nos transmitem acerca
do ânimo dos soldados
é, neste particular, crucial. Quando os soldados
são assaltados pelo medo, pelo desânimo, de tal maneira que a derrota, a catástrofe se afigurem como desfecho mais plausível, então o capitão
deve pronunciar uma arenga. Isso mesmo já aqui foi declarado, ao citarmos
as palavras de Fernando Oliveira (Cp. X, II Parte) que voltamos a recordar:
primeyro todavia olhe e escoldrinhe bem a vontade com que a sua gente determina de pelejar,
e se nelles sentir desconfiança ou frieza […] lhe faça hũa fala. Este é o contexto
preferencial que justifica
que o capitão
pronuncie uma arenga, colocando o enfoque especialmente na componente instrutiva (didaché), uma vez que ela vem no sentido
de contrariar esse estado de espírito. Deste modo,
o engarce
tem a função de precisar
o ânimo das tropas e
implica o tipo de arenga
que se segue. Couto (Década VI da Ásia, Lv. III, Cp. III) ao descrever-nos uma tempestade, nota que na tripulação de Luiz de Mello grassa
o medo: Os soldados
pediram a Luiz de Mello de Mendonça, que quizesse
arribar, porque parecia que os elementos todos estavam conjurados em seu damno, e que era temeridade querer ir contra a ira de Deos. De forma que o capitão
lhes arenga, declarando que a honra não se ganha sem riscos e já outros passaram incólumes por aquele mesmo golfo. Ou o caso colhido
em Castanheda, quando os portugueses já em batalha
naval são confrontados com a chegada
de reforços dos inimigos,
o que leva à tristeza
e ao desânimo,
justificando que o capitão pronuncie uma arenga: quãdo acodem as outras doze lancharas
dos immigos, que parece que achandose perto ouvirão
ho tõ das bombardas, e acodião;
e quando os nossos as virão ficarão
muyto tristes por quão cansados e feridos
estavão, e Francisco
de Melo os esforçou,
dizẽdo (Castanheda, História, Lv. III, Cp. CLI). Portanto,
no momento de proceder à análise
de uma arenga,
há todo o interesse
em se proceder ao estudo dos engarces, uma vez que eles podem determinar a classificação tipológica do discurso
que se segue.
Neste sentido, a informação fornecida pelo engarce
torna-se determinante para a identificação de um tipo específico de arenga
de reminiscência épica: a epipólesis. A historiografia clássica apresenta-nos,
por vezes, um general percorrendo a pé
ou a cavalo as diferentes linhas de um exército, exortando- o à guerra.
Neste caso concreto, a fórmula
do engarce que identifica a epipólesis, há-de contar, como afirma Carmona Centeno
(2008: 47), necessariamente com um verbo de acção que transmita o movimento
do general através do exército,
bem como a presença de uma outra forma verbal que dê conta da respectiva exortação. Naturalmente que no âmbito
do tema deste trabalho,
se dá uma troca de elemento sobre o qual se desenvolve este episódio: da terra passamos
ao mar. Em todo o caso, o esquema que se observa
na epipólesis terrestre é transposto
para o cenário marítimo. Assim, o capitão,
embarcado num pequeno barco, percorrendo
as restantes naus, arengará aos homens nelas embarcadas. No corpus em análise,
existem dois exemplos
de epipólesis prévias ao combate naval, um em Gaspar
Correia[12] e outro em Couto (Década VI, Lv. III, Cp. III). Pela sua beleza
retórica-literária e visualista, o exemplo
de Correia merece aqui particular atenção. Trata-se
de um capítulo dedicado
exclusivamente à revista – alardo - de todas das tropas de todas as embarcações da armada, levada a cabo pelo governador da Índia. Assim, acto primeiro, o governador ordenou aos capitães
das restantes naves que aprestassem os seus homens com as respectivas
espingardas. Acto seguinte,
o governador deslocando-se, não
em cima de um cavalo, mas num catur [pequena canoa] correo todas as naos, entrando em todas. Esta é uma ocasião privilegiada para o narrador
identificar não
só os capitães e as figuras
principais daquela armada pelo nome próprio, mas também para nomear as múltiplas
classes de embarcações, começando pelas maiores
até às mais pequenas.
Em tudo lembra
uma cena colhida da Ilíada de Homero. Finalmente, a frase-prévia à arenga, volta a
afirmar: entrando o Governador em todos estes navios, falando
a toda a gente. Temos pois, um verbo de acção entrando conjugado no gerúndio que implica a repetição
do movimento, bem como o verbo falar, que embora não tenha a força elocutória exortativa esperada, é assumido
no seu pleno valor parenético, com a própria arenga: falando a toda a gente grandes honras e louvores. Como se vê, trata-se
de uma epipólesis sem decomposição[13], pois o mesmo discurso
repete-se várias vezes em diferentes lugares a secções separadas do público-alvo. Algo similar, encontramos em
Couto no seguinte engarce:
O Governador meteose em hum navio ligeiro,
e foi correr as nossas fustas, e fez a todos hũa
muito breve fala. Mais uma vez, aquela fórmula atrás enunciada
se repete, o governador, movimentando-se numa pequena embarcação – foi correr - as restantes
embarcações, arengando às respectivas tripulações - fez a todos hũa muito breve fala. O que há também de comum entre estas duas epipólesis, é que por um lado, esta tipologia de arengas
não se apresenta em estilo
directo, como a maioria do corpus, mas sim, em forma de “report
speech” no caso de Gaspar Correia e em estilo indirecto no exemplo de Couto. Desta forma as palavras
de Carmona Centeno (2008: 42)
relativamente à epipólesis clássica adaptam-se aqui bem, quando afirma que para esta tipologia el estilo directo no es la forma discursiva más empleada. Este estudioso (2008: 381-386) apresenta
uma análise precisamente sobre a epipólesis no mar. Somos levados a concordar
com ele, pois a pronunciação de uma epipólesis antecipa um combate naval que se adivinha
épico, e a sua introdução na narrativa vem acrescentar dramatismo e dinamismo
à cena. Pelo exposto,
podemos com segurança
concluir que na epipólesis naval, o esquema narrativo
da epipólesis prévia a um confronto
terrestre foi transposto para um cenário marítimo, e isso, deve-se,
sem dúvida, à influência da retórica.[14] De forma que os historiadores, cientes dessa tradição
histórico-literária, reproduziram o modelo na historiografia quinhentista.
Indicar o resultado ou as consequências de um discurso. Ao contrário da frase prévia,
a frase posterior caracteriza-se pela sua linearidade o que lhe confere menor
importância. Na maioria
dos casos, uma oração participial, diz-nos que a arenga foi concluída, retomando-se a narração dos feitos. Casos há que reflectem o modo
como o discurso foi recebido
pelos respectivos receptores do discurso, que pode ir do regozijo geral: E animados
todos coestas palavras
(Castanheda, História, Lv. VII, Cp. LXXXII), até ao acatamento submisso das palavras do capitão: Ao que nom ouve nenhum que ysto lhe contrariasse,
por nom ficar falto de sua honra.[15] Para além de reproduzir as
palavras proferidas pelo chefe militar,
a arenga tem ainda como funções antecipar acontecimentos subsequentes, bem como clarificar os verdadeiros motivos
de uma vitória ou de uma derrota. Tanto assim é que, com frequência, o capitão na arenga, traça aos homens
a estratégia a seguir, a disposição dos navios, o tipo de artilharia a usar, entre outros aspectos.
Quando se retoma
o fio da narrativa, obviamente assistimos à execução
prática desse dispositivo estratégico, bem como à sua influência directa
no sucesso do confronto militar.
Dito de uma forma
lapidar: existe uma conexão entre o pronunciamento de uma arenga individual e o seu resultado. Dissemos
atrás que a historiografia portuguesa de quinhentos tinha uma propensão fortemente patriótica. Aqui temos a prova: do corpus analisado, o pronunciamento de uma arenga
prenuncia sempre uma vitória.
Embora existam duas versões de uma arenga
que precedem uma mesma derrota,
a sua inserção nas obras tem como objectivo exaltar
o heroísmo do capitão Lourenço
de Almeida, que com as pernas partidas,
ordenou que o atassem ao mastro do navio, continuando a comandar os seus homens, até à perda total.
Donde se pode concluir que o pronunciamento da arenga determina em alto grau o seu resultado final.
c) Finalmente, o terceiro nível de engarces prende-se com aqueles secções que não fazendo parte da narração dos feitos, todavia só justificam a sua existência em função dos discursos que introduzem. A sua extensão não é homogénea, dependendo dos casos em concreto, contudo é um pouco mais extensa que a frase prévia, ajudando a entender todo o contexto oratório. Servem o propósito de descrever a situação das tropas, a sua preparação militar ou o estado anímico, etc. Dada a sua especificidade, a sua presença é rara no corpus de arengas precedentes a batalhas navais. Apesar de tudo, existe um caso muito evidente em que este terceiro nível de engarces se auto-justifica pelo discurso que introduz. Também não é despiciendo o facto de o mesmo surgir num autor, como João de Barros, cujos discursos estão sempre rodeados de uma certa solenidade retórica. Passamos a transcrever:
e foy surgir no rio de Goa a vinte dias de novẽbro do ano de quinhẽtos e dez. Afonso Dalboquérque como a principal
cousa que avia mister pera cometer aquella cidade Goa, era levar os homeẽs contentes e alegres
pólos ver em algũa
maneira descontentes do que se
passara nella quãdo a leixáram aos mouros,
posto que já sobréste
caso em alguũs conselhos se tinha justificado, toda via lhe pareceo necessário dar pubrica razam de sy, pola experiencia que tinha quanto adoçava
o animo dos homeẽs que obedecem as justificações do superior, e mais nos tempos que elles vam offerecer suas vidas debaixo de seu mãdado. Assy que movido destas causas (posto que em todos visse prontidã pera aquelle feito) quis próporlhe este arrazoamento[16]
Pelo exposto, o historiador, informa-nos claramente que o objectivo primordial do discurso
de Albuquerque é animar as tropas,
“adoçar” o ânimo dos homens antes de atacar a cidade de Goa, que já fora conquistada e posteriormente abandonada. Neste exemplo, nota-se uma simbiose perfeita entre o terceiro nível
de engarces e a frase prévia,
porquanto esta acaba por resumir
o conteúdo do contexto anterior. Para terminar, este terceiro
nível de engarces contribui também para o dramatismo litúrgico que envolve
quase sempre o pronunciamento de uma arenga.
Acabámos de ver que existem
três níveis de engarces
com desempenhos diferentes contribuindo para a integração harmónica das arengas
na narração dos feitos. Para além disso, como tivemos oportunidade de ver, trata-se de um momento oportuno para o autor expressar
algum impressionismo interpretativo na apresentação de discursos e respectivos oradores.
5. Análise retórica das arengas
Depois de termos visto a importância que os engarces detêm
no processo de contextualização dos discursos, deslocamos agora o enfoque
para a estrutura
interna do próprio discurso. Conhecedores da historiografia clássica, os autores, de que aqui nos ocupamos,
procuraram também apresentar algumas personagens de uma forma memorável, fazendo-as pronunciar arengas em momentos
bélicos historicamente determinantes. E tanto assim é que em anos marcados por
confrontos militares cruciais para a manutenção do Estado,
assistimos a uma concentração e sucessão
de arengas. Ao invés, em lapsos temporais
de baixa belicosidade, assistimos a uma rarefacção dos discursos. Com a introdução de discursos, uns em estilo
directo, outros em
estilo indirecto, outros ainda apresentados em resumo, os historiadores portugueses, tal como já acontecera com os predecessores clássicos, procuraram adiantar acontecimentos (em muitas arengas
é frequente o capitão expor a estratégia de combate
ao inimigo), salientar
o carácter e a fineza de saber do mesmo orador e também clarificar
os motivos da vitória,
visto que a arenga precede em todo o corpus uma vitória.[17] Estes historiadores portugueses, na hora de introduzir uma arenga no seu relato,
assimilaram e seguiram os modelos
clássicos, e no caso específico da arenga, do modelo proposto
por Tucídides. Efectivamente, ao procedermos a uma leitura
atenta destas arengas navais, facilmente podemos identificar na sua maioria, uma estrutura interna que integra
duas distintas linhas
argumentativas. Uma de tipo explicativo (didaché), que procura
apresentar um cenário convincente e favorável
antes que se inicie o confronto militar, no qual se expõe a estratégia a seguir para enfrentar
o inimigo, recordando- se comportamentos do passado que podem ser cruciais
para o presente.
A outra linha de pendor exortativo (paraínesis), e como a própria denominação anuncia, tem por objectivo
animar e encorajar
as tropas para a guerra, de forma que prefiram uma morte honrosa digna dos pergaminhos dos antigos a uma fuga vergonhosa.[18] Por sua vez, cada uma destas duas linhas argumentativas desenvolve uma gama de lugares-comuns ou topoi retóricos, como apresenta Antolín (2000:90). Assim destacam-se cinco núcleos argumentativos de lugares
comuns: justum – o orador procura demonstrar que a acção bélica a executar
é justa e colhe o favor divino; utile – o orador procura destacar as vantagens
gerais e pessoais a retirar
desse confronto; necessarium – o orador
demonstrará que a vitória é o único
caminho para a salvação;
possible – argumento que enfatiza a possibilidade e a facilidade da vitória;
dignum – argumento fundamental de exortação
das tropas, uma vez que toca na ética e
brios pessoais.
Um
confronto entre estas linhas argumentativas e o corpus de arengas aqui em apreço
mostra-nos que a componente estratégico-explicativa (didaché), particularmente nas arengas mais extensas, apresenta a estratégia militar a seguir,
recorrendo com frequência ao tópico retórico
do justum, uma vez que a guerra dos portugueses aos árabes no oriente, não é mais do que reconduzir aqueles
territórios, primitivamente cristãos, ao rebanho
de Deus, nessa medida a guerra que vão empreender
tem o favor divino. Nesta orientação, é utile aquela guerra, pois a vitória
produzirá condições favoráveis de comércio quer para o Estado quer para as bolsas individuais. Embora, os inimigos sejam mais numerosos, e porque já assim aconteceu
no passado, é possible derrotá-los novamente, quer pela organização e determinação, quer pela força dos canhões. Por outro lado, a secção
exortativa (paraínesis) enfatiza que a vitória proporcionará a todos a perenidade dos seus nomes nas gerações vindouras (dignum). No corpus, os discursos
em análise privilegiam, quer pela extensão
média/longa, quer pelo desenvolvimento, a primeira
linha argumentativa, a componente explicativa. Na verdade,
o facto de serem extensos
discursos, em estilo directo, permite que o narrador, nesta secção, coloque na boca do protagonista-orador a explicação de toda estratégia e táctica militares
a executar de seguida.
Paralelamente, este processo também possibilita que o narrador faculte ao narratario-leitor as circunstâncias que rodearam
aquele combate decisivo. Desta forma, ao propor este conjunto
de informações pela voz destes
actores/oradores em estilo directo, fica o próprio
narrador, ele próprio,
isento de proporcionar tais informações no decurso da narrativa. Cremos ainda que, um outro factor
potencia o desenvolvimento da componente instrutiva e, por consequência, a verificação das funções anteriormente expostas. Assim, não nos podemos esquecer, como já anunciámos em outro momento deste trabalho, de que estas arengas navais
são pronunciadas previamente às batalhas,
por vezes com um lapso temporal
de dias, e em ambiente
restrito, diante dos restantes capitães
da armada. Este contexto
preciso, permite
que o narrador, pela boca do orador, teça um amplo quadro estratégico-táctico da situação,
tendo oportunidade para tocar com minúcia
os diferentes lugares
comuns retóricos, resultando daí, portanto,
uma ampliação da secção
explicativa. Ao invés,
uma arenga dita já no local da batalha,
e com os soldados ansiosos pela refrega,
o orador havia que explorar argumentos que enaltecessem mais o comportamento nobre, donde resultaria, pela sua intrínseca brevidade, um acento
na componente parenética da arenga.
Descendo agora ao conteúdo
argumentativo dos discursos, como já o declarámos, cada uma das componentes da arenga desenvolve uma série topoi retóricos
ou telikà kephálaia, que provêm das arengas
da historiografia greco-latina. O nosso propósito
é, pois, identificar os topoi retóricos
mais frequentes no corpus seleccionado, utilizando para esse efeito, os valiosos estudos já efectuados neste âmbito, como o de J. Albertus (1908), Navarro Antolín (2000) e Iglesias
Zoido (ed.) (2008),
salvaguardando que, dada a brevidade
deste trabalho, vamos apenas efectuar
uma aproximação a este tema. Estes tópicos
retóricos estavam claramente assumidos pela historiografia portuguesa quinhentista. A prova é que a
Arte da Guerra do Mar de
Fernando Oliveira
dedica o capítulo X, da II Parte, precisamente à virtuosidade e composição da arenga.
Antes de dar batalha
ao inimigo no mar, deve o capitão
aperceber-se minuciosamente do ânimo dos seus homens. Se sentir algũa desconfiança ou frieza em alguns deve proceder
como Judas Macabeu,
deixando-os para trás, para que não acobardem
os outros. Em alternativa, faça o capitão
«hũa fala em que os amoeste do que cumpre fazer», recorrendo o capitão
aos diferentes tópicos retóricos consagrados, para animar os seus:
faça hũa fala em que os amoeste do que cumpre fazer por sua salvaçam
e da terra, por serviço
de Deos e delrey, por sua honra e por seu proveyto, mostrelhe as oportunidades que se offerecem
pera pelejar, e facilidade para vencer, contelhes a justiça que tem por sua parte, e a sem rezam dos imigos, e digalhes
quanto devem confiar no favor divino que he a principal
ancora em que devem escorar.
Tragalhes aa memoria a fama de sua naçam, e a gloria que seus passados
ganharam, as vitorias que ouveram
em especial
contra essa gente com que ham
de
pelejar.
A
sucessão de potenciais argumentos continua, terminando com a oportunidade de o capitão mostrar
aos
seus, os navios dos
contrários, desvalorizando quer o número quer o armamento. Vejamos pois a distribuição dos lugares-comuns pelas duas secções
argumentativas
a)A argumentação instrutiva e estratégica da arenga (didaché)
Esta componente da arenga
procura, pois, apresentar, num quadro convincente, a estratégia político-militar a levar a cabo durante a batalha.
A ideia é despertar
e animar os homens por meio da explicação técnica e estratégica da batalha a travar,
recordando comportamentos passados tomando-os como modelo. Esta secção
instrutiva não será só intelectual mas, sobretudo, emocional, como afirma Iglesias Zoido (2008b: 246). A exposição
da estratégia não pode ser apenas em termos
de compreensão militar, há-de também infundir no auditório a
confiança, o
destemor. Mais, a componente exortativa seguinte, só vingará plenamente, se nesta componente a explicação redundar na assumpção plena pelas tropas do seu real valor. Vejamos
então quais os topoi retóricos mais importantes e logo mais frequentes que enformam
a secção instrutiva das arengas navais.
Justum – o topos do justum é de todos os topoi retóricos aquele que detém maior importância. Esta vantagem advém-lhe não só da sua assídua
presença na quase totalidade das arengas,
mas também da maneira como os restantes topoi se lhe encontram retoricamente subordinados. Por outro lado, é necessário precisar que o topos retórico do justum se materializa nos discursos por meio do lugar-comum da guerra justa, conceito de lastro mais amplo do que a própria retórica discursiva. Na verdade, por guerra justa pode entender-se uma verdadeira ideologia política do estado-nação, e que, naturalmente, transbordou para a historiografia e, por consequência, para os próprios discursos aí inseridos. O exemplo concreto que prova esta ideia, identificamo-lo em João de Barros, historiador comprometido com a ideologia oficial. Trata-se precisamente da arenga de Francisco de Almeida, prévia à batalha
naval de Diu, em 1509:
Porem quanto á parte de tam
divida e alta honra como
se deve ás insígnias que todos seguimos, e debaixo
do favor das quáes pelejamos, que sam as bandeiras
da melicia de Cristo nosso
redemptor, e reáes armas da coroa de Portugal;
esta me persegue,
esta me atormenta
e me acuda dentro do meu peito, como estímulos de justa vingança, vendo com quanta
negligencia minha se passa o tempo sem acodir a esta nova e soberba gente dos Rumes, confiados
na potencia do seu Soldam e nas offértas de quem os chama. Os quaes em nossa face, ousaram despregar e estender
suas lũas e nome escrito
do seu antechristo Mahamed em suas bandeiras, em desprezo da nossa religiam
Christaã, e do nome Português
tam celebrado per todo o mundo, a quem Deos deu este particular sobre todalas outras nações, defensores da fé e
leáes ao serviço
de seu rey.[19]
Pela expressão «as insígnias que todos seguimos»
entendemos os interesses expansionistas do estado e a propagação da religião cristã. De forma que fé e império eram duas faces duma mesma moeda, amplamente justificadas, no Oriente, pelo conceito
de guerra justa.
Guerra dirigida ao árabe, duplamente inimigo da expansão
da fé e do império.
O conceito de guerra justa contra
os árabes não é um conceito exclusivo e criado no
século XVI, uma vez que o encontramos logo, em toda a Península Ibérica, nos tempos da Reconquista. Expulsos os árabes da Península, os portugueses passam, no século
XV, ao norte de África,
onde vão dar novo alento à guerra
justa contra o inimigo de sempre,
procurando reaver territórios que já haviam
sido cristãos. E foi precisamente
para encontrarem um aliado cristão
na luta contra os mouros, com quem pudessem também comerciar, que os portugueses empreenderam a viagem para a Índia. Esperavam
aí encontrar comunidades cristãs oriundas dos alvores do Cristianismo. Chegados à Índia, foi uma verdadeira desilusão verificar
que havia mais mouros em Goa e Cochim que em toda a costa da Barbaria
(Tomaz, 1998:212) e que, para além de inimigos
da fé, eram, agora, também rivais económicos. Face a este problema, o estado
desistia desta empresa, ou enfrentava as dificuldades, socorrendo-se da força militar, assente no poderio naval. Seguindo
esta última opção, o empório
comercial adquiriu
uma tonalidade guerreira, renovando no oriente, as campanhas
militares marroquinas do século precedente, e nas palavras
de Thomaz (1998:212), era um ideal de guerra santa,
uma como que nacionalização da ideia de cruzada. No entanto, para que a guerra contra os árabes fosse aceite
internacionalmente como justa pela Republica Christiana, tiveram os portugueses de se socorrer
de princípios básicos
de Direito, apoiados
na filosofia de Santo Agostinho, que permitiam
fazer a guerra quando houvesse
negação da liberdade
de comércio pacífico, negação da pregação do Evangelho
ou ocupação pelos infiéis
de terras que foram cristãs.
Isso declara Fernando
de Oliveira (1555: IV, II Parte) num capítulo
dedicado exclusivamente a esta matéria,
afirmando que a guerra justa que podemos
fazer, segũdo santo Agostinho, he aquela que castiga as sem justiças que algũa gente fez e nam quer emendar. […] E sobre todas he justa a guerra
que castigas as offẽsas de Deus contra aquelles que
delle blasfemão, ou deyxão sua fee,
como sã os hereges,
apostatas, ou empede a pregação della, e perseguem as pessoas que se a ella covertem
[…]. Atente-se na similitude entre esta afirmação de Oliveira e a arenga do próprio filho de Francisco de Almeida,
Lourenço de Almeida:
E
não queyrais mais que
serem eles imigos de nosso senhor Jesu Christo, que aveis de crer que nos guiou a esta terra pera destruição de seus habitadores, que como tiranos lha tem ocupada, e brasfemão nela ho seu santo nome, sendo criada por ele pera ser nela louvado (Castanheda, História, Lv. II, Cp. LIV) Efectivamente, o Oriente fora cristão nos primórdios do Cristianismo, cedendo religiosamente à força do Islão. Tratava-se, pois, de resgatar
estes territórios de novo para o Cristianismo. Perante este estado de coisas,
não admira que a própria Santa Sé tivesse
patrocinado a empresa
do Oriente,
atribuindo bulas e outros decretos papais
que absolviam todos aqueles
que morressem pela expansão do cristianismo na luta contra os infiéis.
Trata-se de uma questão importantíssima, porque
no processo de convencimento dos homens para a guerra,
era necessário assegurar
àqueles que iriam possivelmente morrer, que estavam de facto a defender
uma causa justa. Sendo Deus naturalmente justo, assegurar-lhes-ia a vitória,
ou o prémio
da vida eterna. Por esse motivo, os oradores fazem amplo apelo ao divino:
E
de crer he que pos nos pelejamos
por exalçamento de sua sancta fé, que assi nos ajudará
como aos passados, e tendo esta fé de vencermos
fica tirado ho receo de sermos
vencidos e de se perder ho estado da Índia (Castanheda, História, Lv. VI, Cp. XXI). Por esse motivo, não admira a quantidade de clérigos,
alfaias religiosas e mesmo relíquias que acompanhavam as armadas
e que tinham uma eficácia poderosa no ânimo dos soldados.
Algumas vezes, após a arenga do capitão-mor, também arengava o clérigo
de serviço, a fim de maximizar
o nível anímico
dos homens, instigando-os à guerra
santa e ao ódio aos «perros», ou seja, os mouros: hũ capela seu se subio ao chapiteo
da nao, e mostrando
hũ crucifixo
a todos os da frota dizia pregandolhes que se lembrassem dos mandamentos de deos, e que ele perdoava
de sua parte os peccados
a todos aqueles
que se arrepẽdessem de coração e de tenção de pelejar por sua sãta fê, e dizia Ora filhos
meus vamos cõtra os imigos de boa võtade com confiança
que os avemos de vencer, pois levamos por capitão a nosso señor Iesu Christo
(Castanheda, História, Lv. II, Cp. XXV). Mas é no excerto de João
de Barros, nessa já famosa arenga de Francisco
de Almeida, antes da batalha naval de Diu, que se aponta quão digna e lembrada será a morte daqueles
que morrerem, tanto pela religião, como pelo estado,
como pela pátria:
por nósso rey, y por nossa grey, que sam as mais justas e gloriósas causas de morrer
que alguem pode desejar. Porque a ley dá glória
de martírio; o rey premio
de honra galardam em fazenda áqueles que nos succedem
na herança; e a grey que é a congregaçam dos nóssos parentes amigos e compatriotas a que chamamos republica, celebra nosso nome de geraçam em geraçam té fim do mundo. (Barros, Ásia, Década II, Lv. III, Cp. III).
Possible – este topos retórico adquire também uma importância relevante, uma vez que vem frequentemente apenso ao topos do justum. Não podemos perder de
vista que a marinha de guerra portuguesa no
oriente, em número
de homens e de embarcações, era irrisória, face ao poderio numérico dos
Turcos e aliados. De forma que o problema
de poucos enfrentarem muitos coloca-se com frequência. Neste quadro competitivo, os capitães
teriam de potenciar
as suas capacidades retóricas para minimizar o embate que os inúmeros inimigos provocariam
nos portugueses. De facto, só havia uma saída, um caminho a seguir que era o caminho do sonho, da possibilidade. Era preciso fazer
acreditar àquele punhado de homens,
que poderiam vencer verdadeiras constelações de inimigos.
Trata-se, pois, de transformar o argumento
mais fraco, tornando-o num dos mais
fortes. Assim, poucos podem vencer muitos, quando estes poucos defendem uma causa justa, naturalmente propícia ao favor divino:
e creo verdadeyramento que assi como nos dá [Nosso Senhor] ousadia, pera que sendo tão poucos ousemos
desperar a tantos milhares
de gente como sam nossos imigos, que assi nos ha de dar efforço
pera lhe resistirmos; e que quer oje fazer tamanho
milagre como este sera, pera que seja conhecido
seu poder; e sua santa fé exalçada
e da sua parte vos peço eu que assi ho creais,
porque sem isso ainda que nos fossemos tantos como imigos e eles tãtos como nos, todas nossas forças não serião
nada pera os vencer,
e sendo como digo toda a multidão dos imigos vos parecera muyto pouca pera os vẽcerdes, e eles vos julgarão pelo
dobro do que eles sam
pera vos temer.[20]
O topos do possible passa também por o capitão
depreciar e minimizar
os inimigos, tentando identificar-lhe pontos fracos e que naturalmente se revertam em vantagem
para os portugueses: Porque
pela nova que tenho, todos
sam forasteiros e gente alugada,
que no tẽpo dáfronta como nam defendem casas próprias, molher, filhos, fé ou honra, no primeiro
ímpeto nosso logo viram as costas e despejam o lugar que defendem (Castanheda, História, Lv. I, Cp. LXVI) Se menospreza o inimigo,
o capitão contrapõe
com as vitórias anteriores contra esse mesmo inimigo, motivo pelo qual ganharam honra
e fama
diante de todos os povos:
em todalas idades em todolos tempos
e em todalas
partes da Európa,
Africa, e agora nestas de Asia que descobrimos e conquistamos, nos tem dados muy illustres
victórias desta bárbara e pérfida
gente. (Barros,
Ásia, Década II, Lv. III, Cp. III). Finalmente, o possible passa por o capitão
encarecer alguma vantagem
ou superioridade técnica ou estratégica. Estando em contexto
naval, é necessário apregoar superioridade, por exemplo, ao nível da artilharia ou da flexibilidade das embarcações porque posto que estẽ embarcados a nossa artelharia lhe arrõbara
os seus paraós; e como eles sã mais alterosos que os nossos bateis nã nos poderá fazer a sua outro tãto; (Castanheda, História, Lv. I, Cp. LX). Ou ainda aproveitar um momento
de menor vigilância por parte do inimigo
para o atacar:
cidade Dadem que himos cometer, do que seus moradores
estarão bem descuydados, porque
de lhes parecer que na
Índia teremos muita ocupação, estarão descuydados da nossa ida;
equãto menos apercebidos esteverem parela,
tanto mayor espanto terão de nossa chegada. (Castanheda, História, Lv. III, Cp.III).
Utile – Cientes de que podem alcançar a vitória,
o capitão optará por lhes demonstrar quão útil é esse vencimento quer do ponto de vista para o colectivo, quer para o estado
ou para a religião,
quer do ponto de vista pessoal.
Sabemos quão importante era o domínio do mar, para controlar
as redes comerciais. Efectivamente, falamos de uma talassocracia: afastando os concorrentes directos, ficavam
os portugueses senhores do mar porque desbaratando os Mouros do
mar, que seria com muyta mortindade delles, ficavão senhores do mar.[21] Já afirmámos que fé e império seguem a par. A vantagem
para uma, é-a necessariamente para o outro:
e se assi ho fizermos
vingaremos as brasfemias que estes perros offendem
a magestade divina, e ganharemos fama, e aquiriremos proveito com tão boõ serviço, como sera ganhar hũa
cidade tão populosa, escala
de toda a
navegação dos mouros do
mar roxo,
e chave de toda a fortaleza do estreyto,
que tomada tira toda a esperança ao Soldão de mandar
armadas aa Índia, e anos de todos os sobre saltos em que nos põe cada dia a vinda dos rumes,
e tirara a esperança dela aos mouros da Índia,
e acabarão de se entregar
por vassalos del rey meu senhor, no que receberemos
grande descanso com ficar
livres do trabalho da guerra;[22]
Como se pode ver, a tomada de Adém, à entrada do Mar Vermelho,
redunda em vantagens, para a Fé cristã,
mas
também para o estado, que, por um lado, passa a controlar
todo o comércio que do oriente, através do Egipto, chegava
à Europa. Por outro lado, impedia
também que as armadas turcas assolassem a Índia no apoio aos reinos
autóctones, ficando, deste modo, todos estes reinos disponíveis para aceitarem a suserania
da coroa portuguesa. Tal conquista era uma ambição
antiga e resultava
assim em numerosos
proventos para a Coroa. Mas a vitória
pode redundar em utilidades materiais para os homens. É por isso que Francisco de Almeida,
antes da batalha, faz anunciar
a todos uma série de benefícios a cada um dos membros da armada,
desde os fidalgos
até aos escravos: que todos
quantos aquy são comigo presentes ajão honras de cavalleiros perfeitamente, assy vivos, como os que Nosso Senhor
levar pera sy, pera honra de seus herdeiros; e o que já he cavalleiro lhe outorgo
as honras de fidalguia, e a todos os degredados perdão livremente de todos seus degredos,
e aos omiziados livre perdão, da parte da justiça,
de seus delitos
e os escravos que neste feito morrerem serão pagos a seus donos por cada hum cincoenta
cruzados, (Castanheda História, Lv. III, Cp. CV).
Necessarium – o topos do necessarium é o que menor representatividade tem nos discursos, o que não impede que tenha importância, como veremos. Este é o argumento que é proferido em situações
de vida ou morte,
em que a vitória
é a única via para a salvação.
Ocorre em situações de assédio
ou de cerco, situações a que aqui os portugueses não aparecem
sujeitos. Se os portugueses aqui não se debatem
com essa situação
preocupante, teremos de analisar
o lado do inimigo,
porque os ataques
portugueses são constantes a cidades
costeiras. Efectivamente, os portugueses, seguindo uma estratégia militar que obteve sucesso
no norte África, repetiram no oriente, verdadeiros ataques-surpresa a cidades/fortalezas costeiras, acompanhados do desembarque anfíbio de tropas.
Eram verdadeiros raids dos tempos modernos. De forma que esses sitiados,
de facto, viviam momentos de sobressalto, cuja salvação
da vida, como da religião, estava na vitória. Já acima falámos
da importância estratégica da cidade de Adém, ambição visionária de Afonso de Albuquerque. Muito do futuro do estado da Índia passava
pelo controlo daquele estreito. E essa importância passou à Historiografia. De facto, a conquista
de Adém proporciona-nos, pela pena de Castanheda, a única parelha
de arengas, da totalidade do corpus. Enquanto o governador português, na sua arenga, como vimos, valoriza a utilidade
da tomada de Adém,
o líder mouro, Mira Mergena, animou os seus, lembrando-lhes a necessidade de vencerem,
pois, caso contrário, se fossem vencidos, a sua religião maometana deixaria de ter ali culto, e, - por amplificação – o próprio centro de peregrinação, Meca, seria tomado e destruído pelos portugueses: lembrãdolhe quão pouco duraria sua ley
naquelas partes se os nossos
tomassem a cidade, e que muy
cedo tomarião a casa de Meca e a destryrião, o que seria muy
grande desonrra de sua ley (Castanheda História, Lv. III, Cp. CV). Como os portugueses não sofrem aqui cercos, nem as arengas são pronunciadas
no
decorrer das batalhas,
o tópos do necessarium não é actualizado como forma de salvação.
No entanto, este mesmo tópos é referenciado numa outra perspectiva, isto é, se os portugueses não se empenharem na luta, verão a sua fama, o seu valor ganho em tantas batalhas, ser
ofuscado. Tal facto
tornar-se-á comprometedor para a imagem
que eles construíram no oriente, porque uma derrota significava que os povos indígenas
cresceriam em soberba e insolência contra a presença
portuguesa, deixando
de lhe dever
respeito e medo. Isso significaria uma ameaça
séria para a presença
e interesses da coroa. De forma que o topos que nestas circunstâncias é o topos do dignum/gloriosum que se actualiza,
como no exemplo: e não ho fazendo
assi dareis lugar a que se escureça
a muyto grande fama que tẽdes ganhada nas notaveis
façanhas que ate agora tendes
feytas (Castanheda, História, Lv. II,
Cp. LXV) por isso,
é crucial apelar para a honra e dignidade desde há muito firmadas mas que necessitam de ser renovadas
porque será acrescentamento da honrra e fama que ganhastes ate gora (Castanheda, História, Lv. I, Cp. LXXIII).
Em suma, a didaché
assume-se, sobretudo nas arengas
mais extensas, como o elemento
fulcral na predisposição das tropas para a batalha,
procurando demonstra-lhes que os cenários
político, militar e religioso, são inequivocamente favoráveis à vitória,
de onde advirão
benefícios para a coroa e para cada um, individualmente. Neste sentido, esta secção procura
erradicar qualquer
réstia de temor que possa existir nos esconsos da mente dos combatentes.
b) A argumentação exortativa da arenga
(paraínesis)
Em
muitas arengas é possível
identificar claramente uma fronteira entre a didaché e a paraínesis. Essa demarcação é assumida
por um articulador do discurso
conclusivo, de que são exemplos «por isso», «por tanto» ou «assi».
Embora seja esta a
última parte da arenga, ela, no entanto, detém uma importância crucial no seu sucesso pragmático: serão estas derradeiras palavras
do orador, que ecoarão
na mente dos
combatentes no momento da refrega.
É pois a última oportunidade que o orador tem para persuadir
os seus homens, e que, por esse motivo, se deve empenhar
retoricamente, usando uma linguagem fortemente exortativa, mobilizadora de emoções e sentimentos. Embora não exista uniformidade estrutural nesta componente da arenga, num número reduzido de discursos, é possível,
contudo, apontar tendências. Assim, algumas arengas iniciam esta secção com um resumo/ rememoração de alguns topoi anteriormente tratados, designadamente o topos do
justum:
portanto senhores e amigos, pois vos Deos deu animo, forças,
prudẽcia, e seguimos ley sancta,
e servimos a príncipe a quem elle mesmo Deos concedeo o que nam deu a nenhũ de seus antepassados, […], devemos crer que nós outros seus criados
e vassállos trazemos em favor nosso aquelle espírito de Deos que movéo a elle pera cõtinuar
esta tam alta empresa (Barros, Ásia, Década II, Liv. V, Cp. IX).
Após este epítome, vem então, uma forte componente parenética, fazendo uso de conjuntivos e imperativos exortativos, intencionalmente seleccionados para moverem emoções. Em termos retóricos, este é o momento em que
os
tópoi
do honestum e dignum
têm uma atenção privilegiada, pois sucedem-se apelos para a honra, para a dignidade, quer pátrias
quer pessoais: encomendovos muyto como a
verdadeiros Christãos que não queirais perder esta gloria por algũa pouca dafrõta que podereis
oje mais receber
que os outros dias; porque
será acrescentamento da honrra e fama que ganhastes
ate agora (Castanheda, História, Lv. I, Cp. XXVIII). Quanto ao lugar-comum da honra, é interessante verificar que ele mesmo condicionou a forma como os portugueses combateram e lutaram no oriente.
Atente-se então neste excerto retirado
de Couto (Ásia, Década IV, Lv. V, Cp. V): e que ganhassem aquella honra a espada,
porque assi ficaria a vitoria mais fermoza,
e ao primeiro que investisse navio lhe prometeo
cem cruzados. Se nos primeiros anos na Índia, os portugueses, nos confrontos navais, usaram navios de alto bordo,
com artilharia pesada,
rapidamente recuaram
nas suas intenções. Efectivamente, por pressões de fidalgos,
alegando precisamente que nestes combates navais à distância
não se ganhava honra, bem como forjados
por um espírito
de cruzada desenvolvido em
Marrocos, em que os combates eram
feitos corpo-a-corpo, à espada,
as batalhas navais mudaram de estratégia. Rapidamente, os navios grandes foram substituídos por outros mais pequenos, que permitissem o assalto
à abordagem das embarcações inimigas, e a artilharia, também ela substituída, o que, a longo prazo se revelou
uma retrocesso militar. De facto, para se ganhar honra, os portugueses entendiam que, como diz João de Barros, era necessário ter espadas cevadas do sangue (Barros,
Ásia, Década II, Lv. III, Cp. III). Por esse motivo anacrónico, estas exortações nos
finais das arengas são recorrentes. Finalmente, estando os homens persuadidos e cientes do que foi dito até ao momento,
a arenga encerra por meio de uma amplificação e antecipação da vitória,
com o orador, naturalmente,
a invocar a intercessão de Deus, da Virgem, que eu confio em Deos que nos há de dar vitoria delle (Couto, Ásia, Década
VI, Lv. IX, Cp. III) ou de um santo, que não poderia ser outro, senão Santiago…
o Mata Mouros: já lhe parece pouco o que ymos fazer pera o que fará tanto que me ouvir invocar o apostolo
Sanctiágo capitam de nossas victórias (Barros, Ásia, Década II, Lv. V, Cp. IX).
No
final deste ponto,
podemos verificar que as arengas
navais da historiografia portuguesa quinhentista tentam seguir
na sua estrutura interna, a organização consagrada pela historiografia clássica. Na verdade, as mais extensas, apresentam uma divisão
em duas secções
argumentativas, uma explicativa (didaché) e outra exortativa (paraínesis). Enquanto
a primeira, por meio
da explicação persuasiva da teia político-militar, procura infundir confiança nos homens, a segunda
intenta, por meio da exaltação
dos argumentos da justiça
(humana e divina),
da honra e da memória
futuras, desencadear nos corações dos homens
o desejo de combate.
Observámos, pois, que os historiadores portugueses de quinhentos conheciam bem os diferentes topoi retóricos
e sapientemente conseguiram enformá-los com as ideologias culturais, políticas e religiosas que atravessaram a História
dos portugueses de antanho,
que embora tendo um pequeno berço para nascer, tiveram o mundo inteiro
para morrer.
6. Conclusões
Como notas finais, vamos sublinhar algumas questões. Este é provavelmente o primeiro
estudo, singelo é certo, que abordou as relações
que unem a Retórica e a Historiografia portuguesa do século XVI. Na ocasião de se examinar essa vasta produção historiográfica é importante que os estudiosos prestem
a atenção devida a esses discursos militares com que os historiógrafos e cronistas
semearam os seus relatos narrativos. É hora de se afastarem determinados complexos sobre a veracidade desses discursos, porque, mais importante do que isso, é que estas arengas escondem nos esconsos das entrelinhas, muita da ideologia
que impeliu este país no século XVI e são por isso cruciais
para a compreensão dessa época. Neste particular, a arenga naval assume maior relevância uma vez que o império português tinha os seus pilares assentes precisamente no oceano, sobretudo o estado português
da Índia. É significativo e relevante
assistir à pronunciação de arengas
retoricamente bem elaborados por protagonistas como Francisco de Almeida ou Afonso de Albuquerque, a bordo de uma nau diante dos capitães. Há aí propósito
claro de Barros,
Castanheda, Correia e Couto, conhecedores
da tradição clássica,
elevarem os actores
e os feitos pátrios à mesma condição
e até superação
dos feitos homónimos de gregos e latinos. De forma que, fica provado, que estes historiadores, conseguiram habilmente, não só pela experiência de homens do mar, mas sobretudo pela erudição literária clássica, edificar monumentos literários duradouros e que merecem
no futuro um estudo
completo dos discursos
militares aí inseridos.
Luís Miguel F. Henriques
Escola Superior de Educação Portalegre (Portugal) luduvicus.m@gmail.pt
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VALDEZ SANTOS, N. (2003), “A literatura militar clássica”, Anais da Academia Portuguesa de História, II Série 41, 153- 196.
[1] Como bibliografia fundamental
para a correcta analise da presenca da arenga
militar desde a Antiguidade ate ao Renascimento, cf. IGLESIAS ZOIDO (ed) (2008).
[2] BARROS, Ásia, Prólogo da Década III.
[3] Cf. CARMONA CENTENO (2008: 42).
[4] Cf. IGLESIAS ZOIDO (2007) e (2008a: 39).
[5] A presente seccao dedicada a
analise dos engarces e elaborada a partir do IGLESIAS
ZOIDO (2006).
[6] G. CORREIA, Lendas Da India,
Liv. I, «Continuacao do terceiro ano do
Vice-Rei Dom
Francisco. Armada de Jorge de Aguiar. Ano de 508». Cap. IV.
[7] G. CORREIA, Lendas Da Índia, Liv. II, «Afonso de Albuquerque, segundo governador». Cap. XVI.
[8] G. CORREIA, Lendas da Índia, Liv. I, «Continuação do terceiro ano do Vice-rei Dom Francisco. Armada de Jorge de Aguiar. Ano de 508.» Cap. III
[9] Cf. COUTO, Década VII da Ásia, Liv. I, Cap. V: «Só hum Francisco Anes, da obrigação de Fernão de Sousa Távora, requereo e bradou…»
[10] Cf. PANIAGUA AGUILAR (2007: 5-6)
[11] G. CORREIA, Lendas da Índia, Liv. III, «Lopo Vaz de Sampayo. Governador Provisório», Cap. I
[12] G. CORREIA, Lendas da Índia, Liv. III, «Lenda do Governador Nuno da Cunha….» Cap. XXI
[13] Cf. CARMONA CENTENO (2008: 58).
[14] Cf. CARMONA CENTENO (2008: 384).
[15] G. CORREIA, Lendas da Índia, Liv. III, «Lopo Vaz de Sampayo. Governador Provisório», Cap. I
[16] J. de BARROS, Asia, II Decada, Liv. III, Cap. III
[17] Cf. IGLESIAS ZOIDO (2008b: 241). Cf. introdução de discursos na historiografia quinhentista en PINEDA (2007).
[18] Cf. IGLESIAS ZOIDO (2008b: 244)
[19] J. DE BARROS, Asia, II Decada, Liv. III, Cap. III
[20] CASTANHEDA, História, Liv. I, Cap. LXVI
[21] G. CORREIA, Lendas da Índia, Liv. I, «Continuação do terceiro ano do Vice-rei D. Francisco. Armada de Jorge de Aguiar. Ano de 508.» Cap. III
[22] CASTANHEDA, Historia... Liv.III, Cap. CV