MARTINHO TOMÉ MARTINS SOARES
EKPHRASIS E ENARGEIA NA HISTORIOGRAFIA DE TUCÍDIDES E NO PENSAMENTO FILOSÓFICO DE PAUL RICOEUR
Ekphrasis and Enargeia in the Thucydidean Historiography and the Philosophical Thought of Paul
Ricoeur.
ABSTRACT: In the Greek schools of the Roman Empire, the handbooks of rhetoric (Progymnasmata) defined ekphrasis as a speech that brings the
subject matter vividly
before the eyes. These manuals also point to Thucydides as one of the best
specialists in
this rhetorical technique which consisted, essentially, to give vividness (enargeia) imagery to the speech as a way to engage the imagination and feelings of the reader. In this article we present a set of examples, taken from the History of the Peloponnesian War, which prove the skill of the Athenian historian
to make us “see” the events in the mind's
eye. After that and using the opinions of Paul Ricœur around history
and fiction (from the normal and healthy
coexistence between readability and visibility along with the ethic power of the textual image in situations that cry
out applause or disapproval), we will see how this rhetorical and fictional
strategy, used by Thucydides and recovered now by Ricoeur
for the studio of contemporary historiography, can be reconciled
with a discipline that aims at objectivity, impartiality and scientific rigor.
KEY WORDS: Thucydides, Ricoeur, ekphrasis, enargeia, mimesis, rhetoric, history and fiction.
RESUMO: Nas escolas gregas do Império
Romano, os manuais
de retórica, designados de Progymnasmata, definiam ekphrasis
como um discurso
que põe de forma vívida, sob os olhos, determinado assunto. Apontavam, igualmente, Tucídides como um dos
maiores especialistas nesta técnica retórica
que consistia, essencialmente, em conferir
vividez (enargeia) imagética ao discurso, como forma de
envolver a imaginação e os sentimentos do leitor. Neste artigo, apresentaremos um conjunto
de exemplos, retirados da História
da
Guerra do Peloponeso, que comprovam
esse talento do historiador ateniense para nos fazer ver os acontecimentos do passado com os olhos da mente. Depois, recorrendo às reflexões
de Paul Ricœur em torno de história
e ficção (da normal e saudável convivência entre legibilidade e visibilidade e do poder ético da imagem textual em situações
que clamam louvor ou reprovação), veremos como esta estratégia retórica e ficcional, usada à saciedade por Tucídides e recuperada, agora, por Ricœur, para o
ateliê da historiografia contemporânea, se pode conciliar
com uma disciplina que almeja objetividade, imparcialidade e rigor científico.
PALAVRAS-CHAVE: Tucídides, Ricœur, ekphrasis, enargeia, mimesis, retórica, história e ficção.
Fecha de Recepción: 15 de junio de 2011.
Fecha de Aceptación: 12 de septiembre de 2011.
INTRODUÇÂO
OS HISTORIADORES ANTIGOS, a começar pelos considerados pais da história -Heródoto e Tucídides- à falta de instrumentos e hábitos
de análise crítica, indispensáveis na oficina do historiador moderno, como sejam, por exemplo, as provas documentais, primárias e secundárias, tinham por hábito conferir assertividade e autoridade às suas narrativas históricas insuflando-lhes vividez pictórica, de modo a gerar impacto emocional e visual na mente dos ouvintes
ou leitores.
Este processo é frequentemente
mencionado nos antigos manuais de retórica sob a designação
de enargeia, sendo esta a alma da ekphrasis, e
era comum não só entre historiadores
como entre poetas
e oradores. É da epopeia
homérica que nos vêm os exemplos
mais antigos. Ora, no caso da historiografia, longe de minar a confiança do leitor, a enargeia
contribuía para aumentar a credibilidade do relato, na medida em que aproximava a observação indireta do leitor
da observação direta
(autopsia) do historiador ou da testemunha. Tucídides, como veremos adiante, era citado como o mais exímio cultor deste artifício
retórico.
Com o advento
da historiografia moderna,
também dita científica, a enargeia, enquanto estratégia retórico-ficcional que tinha feito as delícias
de sucessivas gerações de historiadores até ao século
XIX, é categoricamente repudiada como atentatória da objetividade e seriedade
do trabalho do historiador. Nas últimas décadas, o conceito de enargeia tem
aparecido, sobretudo, em abordagens de teor literário
e filológico.[1] Já o conceito
de ekphrasis, pelo facto de ser uma técnica
extensiva a todos os géneros
literários e não conotado,
especificamente, com a história, teve melhor sorte, nunca caiu em desuso. Sofreu, sim, uma mutação restritiva: deixou de ser uma descrição que colocava, com vividez (enargeia)
imagética, sob os olhos do espectador ou leitor o objeto,
qualquer que fosse, ou ação, e passou a significar, de forma limitada,
uma descrição poética
de uma obra de arte escultórica ou pictórica. Ainda assim, ekphrasis
é tema que tem despertado, nos últimos
anos, uma atenção revigorada nos Estudos Literários e nos Estudos Clássicos.[2] Falta - e é essa a razão deste ensaio - analisar
o regresso da ekphrasis
(tal como era entendida
na Grécia antiga) e da sua propriedade principal, a enargeia, ao pensamento historiográfico contemporâneo.
Há historiadores e pensadores da envergadura de C. Ginzburg,[3] C. Calame,[4] Jacques Rancière,[5] A. Prost[6] e mesmo mais insuspeitos, F. Braudel[7] e C. Seignobos,[8] que, sem invocarem diretamente os termos específicos de ekphrasis ou enargeia, não se inibem de dizer que a história
deve mostrar, deve “fazer ver”, deve evidenciar. Conscientes de que a história
possui uma dimensão narrativa inalienável, estes reconhecem-lhe o potencial
descritivo que torna os acontecimentos do passado visíveis para a mente. No entanto,
ninguém, nas últimas décadas,
foi mais consistente, sistemático e convincente no tratamento da faceta visível da narrativa
historiográfica do que Paul
Ricœur. O filósofo
francês foi
um dos pensadores contemporâneos que mais investiu
na conciliação entre história científica
e ficção, e mais tempo se deteve a refletir sobre esta faculdade natural da narrativa que é a de “fazer ver”. É ideia sua não só que todo o discurso
histórico, enquanto narrativa e representância do passado, se entretece
de legibilidade e visibilidade e, por conseguinte, de história e ficção, como também é ideia sua que o
historiador, sem pôr em causa a crítica e a objetividade próprias da prática historiográfica, deve recorrer
à retórica ficcional, sempre que se imponha
a preservação da memória de acontecimentos tremendamente singulares, que gritam por justiça
ou reconhecimento público. O intuito deste artigo é, pois, demonstrar como Paul Ricœur,
em duas obras fulcrais para o pensamento histórico contemporâneo - Temps et Récits I e III (1983 e 1985) e La mémoire, l’histire, l’oubli (2000) -, promove uma nova dialética entre história e ficção;[9] trabalhando ideias que no contexto
da Historiografia e Retórica
Clássicas eram identificáveis como ekphrasis
e enargeia e
que Tucídides soube aplicar
como ninguém na sua História
da Guerra do Peloponeso. Veremos
como uma epistemologia histórica para o século
XXI, uma epistemologia que supera e concilia as duas posições
extremas que se digladiaram ao longo do século XX (neopositivismo e narrativismo) se nutre de princípios similares aos que um historiador clássico e pré- científico, como Tucídides, tão bem utilizou
e transmitiu a sucessivas gerações de historiadores.
Abordamos, pois, este assunto em duas perspectivas distintas mas que se deixam interrelacionar. Numa primeira parte, teremos o nosso foco apontado
para o conceito de enargeia, na cultura
clássica e, de modo particular, na obra tucidideana, donde extrairemos uma
série de exemplos
representativos. Numa segunda
fase, confrontaremos a estratégia tucidideana com as considerações de Paul Ricœur em torno de história
e ficção, mais especificamente, as respeitantes ao problema
da representação literário-científica do passado.
O conceito
atual de ekphrasis tem um significado diferente do que tinha na Antiguidade, mormente, nas escolas gregas
do Império Romano.
A crítica literária
moderna entende ekphrasis ou écfrase como um texto comprometido com as artes visuais.
Tanto pode ser uma descrição
poética de uma obra de arte pictórica
ou escultórica como a representação verbal de uma representação visual ou, muito simplesmente, palavras acerca de imagens.
Todavia, na sua aceção original,
a função central
de ekphrasis era fazer o ouvinte “ver” o assunto com os olhos da mente ou usar a
linguagem de modo a
que o auditório conseguisse imaginar a cena e se sentisse emocionalmente tocado. Este conceito de ekphrasis como força persuasiva, actuante sobre o ouvinte,
consolidou-se a partir do Encómio de Helena, de Górgias, e manteve- se com este significado ao longo de toda a Antiguidade até à era Bizantina. A ekphrasis depende, essencialmente, do efeito sobre o ouvinte ou leitor, e não de um determinado
assunto, referente ou género
literário. O que importava
era convencer e emocionar
o auditório, ou, segundo
Dionísio de Halicarnasso (Lys. 7; I.14, 17)
tornar “os ouvintes espectadores”. Na sua aceção antiga, a ekphrasis não dependia de nenhuma qualidade formal ou referencial; fundamental era, nas palavras
de Quintiliano, a disposição do assunto
sob os olhos:
sub oculos
subiectio (Inst. Or. 9. 2. 40). O que definia
intrinsecamente ekphrasis era o
efeito sobre o ouvinte ou
leitor, e o que a distinguia de uma simples narração
(diegesis) era a vividez, dita enargeia. Segundo o retórico Nicolau (numa clara alusão a Tucídides), um texto é considerado ecfrástico quando
é vívido e é vívido
quando é detalhado. Uma narração simples (diegesis) limita-se a informar
que os Atenienses e os Espartanos entraram em guerra;
mas um texto ecfrástico faz mais: informa sobre os preparativos e os equipamentos militares de cada uma das
fações e a forma como se desenrolaram os
combates (Prog. 68; II 9- 10). Por conseguinte, podemos dizer que a finalidade da ekphrasis era a enargeia. Daí que os dois termos
fossem muitas vezes
usados de forma indistinta.[10]
De acordo com os Progymnasmata, os antigos retóricos, como Theon e Hermógenes, definiam a enargeia como a arete da descrição pictórica (Prog. 2; II. 119, 27 SP e Prog. 10; II.16, 32 Sp). O étimo enarges significa “visível”, “palpável”, “claro”, “distinto”. O seu traço semântico
essencial é a ligação ao sentido
da visão, do “fazer ver”. Dionísio de Halicarnasso (Lys. 7; I.14, 17 Us.-Rad.) é quem nos apresenta a definição mais completa, declarando
que enargeia é um efeito estilístico que apela aos sentidos
do ouvinte, pelo facto de determinadas circunstâncias serem descritas de um modo tal que o ouvinte é convertido em espetador. O crítico grego Demetrius
(Eloc. 209), por sua vez, enfatiza
a descrição pormenorizada que o conceito
de enargeia implica. A enargeia resulta de uma narração
rigorosa que não omite detalhe.
Para este, toda a representação contém uma parte de enarges. Finalmente, os correlativos latinos de enargeia contribuem todos para esclarecer e reforçar
o feixe de sentidos
do termo: demonstratio, evidentia, illustratio, repraesentatio, sub oculos subiectio.
Os retóricos retiravam a maior parte dos exemplos
que citavam para ilustrar ekphrasis
e enargeia de poetas e historiadores. Desses, Homero, Heródoto e Tucídides eram os mais nomeados. E, de facto, há uma associação clara entre a hipotipose narrativa, outro sinónimo para ekphrasis, e a História de
Tucídides. Desde cedo, o historiador ateniense ganhou reputação de habilidoso reconstituinte de cenas;
de notável explorador do poder figurativo e dramático
da linguagem, pela forma como confere relevo
a determinadas acções ou personagens que atraem e envolvem as emoções do leitor. Desde cedo, os leitores
reconheceram em Tucídides
uma dupla faceta:
o historiador objectivo, distante e desapaixonado e o talentoso relator de cenas entusiásticas e emocionantes, que são autênticos simulacros de presença.
Nesta arte do realismo,
não diverge do seu congénere,
Heródoto; ambos foram capazes de
recriar memoráveis experiências visuais que transportam o leitor,
pela imaginação e pela emoção, para o teatro dos acontecimentos. Este facto chamou a atenção
de muitos
dos admiradores de Tucídides, e tornou-se
praticamente um lugar-comum mencioná-lo como um exemplar artífice de ilustração narrativa (a par de um compatriota tão ilustre como Homero). Disso mesmo nos dá testemunho Plutarco (Glor. Athen. 347a-c.), ao comentar
a descrição da batalha
no porto de Siracusa
(Thuc. 7. 71):
[…] o melhor historiador é aquele
que através de emoções e das personagens compõe a sua história
como uma pintura.
Tucídides esforça-se sempre na sua escrita
por
alcançar esta vividez
[ἐνάργειαν], ávido por fazer do leitor um espectador e por gerar nos leitores
as mesmas sensações de espanto
e de consternação sentidas pelos que assistiram aos acontecimentos. […] há uma marca de pictórica vividez [γραφικῆς ἐναργείας] na composição e na modelação dos
acontecimentos.[11]
O objetivo de Tucídides
é duplicar no leitor o espetador real dos acontecimentos, levando o leitor a experimentar as mesmas emoções de assombro
e comoção
daqueles que assistiram ou intervieram diretamente (deduz-se) nos terríveis eventos da guerra.[12] E - Plutarco é bastante
explícito - essa ressonância só é possível através da γραφικῆς ἐναργείας. É a forma como compõe o seu texto que lhe dá esse caráter pictórico
que leva a compará-lo a uma pintura.
A comparação entre história e pintura, destacada por Plutarco como habilidade própria de Tucídides, recorta-se de uma tradição
que acentua as similitudes entre literatura e pintura.
Vem-nos à mente o consabido aforismo do poeta grego Simónides de Céos: “a pintura é poesia muda e a poesia é pintura falante”
– também citado por Plutarco nas linhas que antecedem
o excerto acima transcrito (347a). Na República (10.605a), Platão apresenta o poeta associado
ao pintor, acusando
um e outro de defraudarem a verdade.
São célebres também as declarações de Aristóteles, na Poética (1448a5, 1450a27, 1450b1), a propósito
das semelhanças e diferenças
entre pintura e poesia ou na Retórica (3.10, 1410b 33), onde indica como uma das virtudes da lexis ou da elocução o “pôr diante dos olhos”,
para “fazer ver”. Depois
dele, Horácio,
na Epistola ad Pisones
(vv. 361-364), cunha uma das mais conhecidas divisas sobre o assunto: ut pictura poiesis. Já na contemporaneidade, Ricœur, que se debruça longamente sobre o poder retórico-figurativo da história,
como veremos adiante,
afirma: “On peut dire tour à tour de l’amateur
d’art qu’il lit une peinture
et du narrateur qu’il dépeint une scène de bataille”.[13]
Relativamente a Tucídides, não é difícil encontrar quem subscreva
a leitura de Plutarco.
Já no século XX, P. A. Brunt junta a sua voz à de Kurt von Fritz, de quem faz a recensão da obra - Die griechische Geschichtsschreibung -, e não hesita em afirmar
que, de todos os historiadores antigos, Tucídides
foi o mais vívido e empolgante contador de uma história,
podendo-se comparar cada frase sua a um disparo de máquina fotográfica. “Thucydides was of all ancient
historians the most vivid and exciting teller of a story – each phrase can be like a camera shot”.[14]
Outro especialista em Tucídides, Hornblower, também constata o talento
do filho de Oloros para “fazer ver” e, por conseguinte, envolver emocionalmente o leitor
e conferir
vividez e akribeia trágica à sua obra. Assim, alguns
detalhes que parecem fortuitos explicam-se pelo seu efeito emocional. A numeração, por exemplo, para além de ser uma resposta à precisão
(akribeia) que Tucídides promete
no livro I, cumpre
uma função retórica e trágica
- a de facilitar
a visualização e aumentar o pathos: “the precision
here makes it easier
to visualise, and the enumeration adds pathos”.[15]
Nas escolas gregas do Império Romano, os manuais de exercícios por onde os alunos
aprendiam os fundamentos da retórica,
os Progymnasmata, apontavam Tucídides como um dos maiores
cultores dessa técnica
literária que identificámos como ekphrasis
e que era definida,
nesses mesmos manuais, como um discurso
que põe de forma vívida, sob os olhos, determinado assunto. Os episódios de Tucídides mais frequentemente citados eram a batalha nocturna (7.43.4), a fortificação de Plateias
(3.21), a peste (2.49-54)
e a construção da máquina de guerra (2.75-78
e 4.100).
No entanto, muitos outros passos podem servir de exemplo.
Selecionámos alguns que julgamos particularmente ilustrativos e significativos no desenrolar da intriga.
O ataque de Plateias, porque marca o início a sério do conflito
armado entre as duas potências. A descrição
da peste, pela força trágica,
emocional e imagética
do discurso, mas também pelo seu simbolismo no desenvolvimento e desenlace
da História da guerra do Peloponeso. O episódio da corrida
de barcos é um dos mais memoráveis da intriga
tucididiana, pelo que representa de peripécia, movimento, aventura,
empolgamento e dramatismo. Os cercos de Plateias (2.75-78) e de Siracusa são dois exemplos magníficos de ekphrasis. Dentre eles, optámos por traduzir algumas linhas do cerco de Siracusa,
não só pelo que contém de vividez imagética
mas por ser o acontecimento que marca o início do desaire
ateniense. Na impossibilidade
de transcrever na
íntegra todos estes episódios, decidimos apresentar alguns excertos
mais representativos. As traduções
são nossas.
O assalto de surpresa
dos Tebanos a Plateias,
que marca o início formal da guerra do Peloponeso, é narrado entre os capítulos
2 e 4 do livro 2. Tucídides conta com grande precisão
de movimento, acção e realismo, como os Tebanos se fizeram infiltrar, de noite, dentro das muralhas da cidade,
apanhando todos os habitantes desprevenidos; como agiram com boa fé e pacifismo, ao propor um tratado de paz em vez de passar logo à chacina
da população; como os Plateienses aproveitaram esse período
de negociações para se inteirarem do número de soldados
invasores; como, ao perceberem a escassez
numérica dos seus adversários, se reuniram às escondidas e planearam um ataque; como bloquearam todas as saídas e encurralaram os Tebanos,
procedendo depois à sua perseguição
e chacina pelas labirínticas ruas da cidade; como muitos Tebanos desorientados e atacados
de todos os lados pela população em fúria foram selvaticamente aniquilados. Toda a perseguição é fértil em ekphrasis, de tal modo os movimentos, as acções e as reacções
são descritas pormenorizadamente, como se uma câmara de filmar,
do alto das muralhas, acompanhasse toda a cena ao longo das ruas. É do contexto
desta violenta perseguição que extraímos
o seguinte excerto
(Thuc. 2.4.4):
Na perseguição pela cidade, alguns subiram às muralhas e precipitaram-se daí abaixo, a maioria desses morreu; outros encontraram uma porta que não estava guardada e, tendo-lhes uma mulher dado um machado,
eles puderam, sem serem vistos, cortar a tranca e sair, não muitos porque foram logo descobertos; entretanto, outros eram mortos aqui e ali ao longo da cidade. No entanto,
o grupo mais numeroso
e que se mantinha
mais unido desembocou numa grande casa que estava junto da muralha e cujas portas se encontravam abertas, julgando que essas portas eram as da cidade
e que davam acesso directo ao exterior. Vendo-os lá trancados, os Plateienses interrogaram-se se deviam lançar
fogo à casa ou recorrer a outro meio.
A cena da peste é
das mais memoráveis, comentadas e glosadas (Albert Camus, A peste) da obra de Tucídides, por isso dispensa transcrições. Ninguém consegue ficar indiferente ao seu carácter pathético. Mais uma vez, a descrição é realista, pormenorizada,
emocionalmente impressionante e de um notável efeito
visual. Ficou célebre a análise de Cochrane,
que comparou a descrição das doenças
do corpo político
ateniense à forma como Hipócrates descrevia as doenças
da anatomia física.[16] Adam Parry contraria esta visão num importante ensaio consagrado ao estudo da linguagem empregue na construção desta cena: The language of Thucydides’
description of the Plague.[17] Essencialmente, refuta as teses dos que encontram
na construção da cena influências da linguagem
técnica ou do modelo hipocrático.[18] Com marcas vocabulares importadas dos géneros
épico e trágico, a descrição da peste é, sobretudo, em termos de léxico e de estrutura, uma peça poética original de Tucídides. A peste,
tal como a guerra,
é pathos, é uma catástrofe alimentada por sofrimento e destruição. É o pior de todos os desastres
descritos por Tucídides, por isso é relatada
com uma linguagem
poética de intensidade apocalíptica.[19] Os termos que relatam
a sua aparição
na cidade sugerem
um ataque militar:
são verbos como ἐπιπίπτειν, ἑσπίπτειν, νικᾶν, ξυναιρεῖν. Tucídides apresenta-nos a doença como uma invasora não humana ou supra-humana, um inimigo demoníaco contra o qual nada pode a força humana.
A peste é também o mais violento
desafio à tentativa
de Péricles para exercer
qualquer espécie
de controlo racional
sobre o processo histórico, uma vez que ela ocorre logo após o seu discurso
optimista acerca
do futuro. Assume, assim, um papel metafórico e dramático, uma imagem concentrada da guerra, significando, em termos metonímicos, a futura derrota dos Atenienses e a própria desordem e perversão
moral da guerra.[20]
A revogação da pena de morte dos Mitilenos
(Thuc. 3.49.2-4) dá origem a um episódio de forte pendor dramático
e visual. Inicialmente, os Atenienses tinham decidido destruir Mitilene, executar
todos os homens e escravizar todas as mulheres e crianças.
Com esse fim, enviam um barco à ilha com soldados
encarregados de aplicar a sentença. No dia seguinte, arrependidos da dureza
da pena, decidem revogá- la. Enviam outro barco de emissários com a finalidade
de chegar à ilha a tempo de evitar a matança.
Imediatamente, enviaram outra trirreme a toda brida, temendo encontrar a cidade
destruída se a anterior, que levava cerca de um dia e uma noite de avanço, chegasse primeiro. Como os embaixadores de Mitilene
lhes puseram vinho e farinha
na embarcação e prometeram-lhes grandes recompensas se chegassem
antes, seguiram viagem com tal rapidez que os homens remavam ao mesmo
tempo que comiam farinha
amassada com vinho e azeite
e, enquanto uns dormiam,
os outros continuavam a remar. Por sorte, porque não soprava nenhum vento contrário, e a primeira embarcação ia sem pressa por causa da infeliz missão, ao passo que a segunda se apressava
do modo referido, a primeira
chegou apenas com o avanço suficiente para Paques ler o decreto
e se preparar para cumprir a sentença,
mas então a segunda
atracou logo atrás e impediu a
destruição. A que ponto
Mitilene esteve próxima do perigo!
Connor, comentando este episódio, observa o quanto a corrida
de barcos, pela sua vividez
imagética e pela forma como envolve
emocionalmente o leitor,
contribui para pôr em causa a objectividade ou a ausência
de juízos do historiador, constituindo estas mais uma estratégia de persuasão
do que propriamente um objectivo, pois, sob a capa da objectividade, Tucídides acaba por fazer passar o seu próprio
juízo: a sentença
era injusta e excessiva. A técnica
para fazer o leitor ler o que não está explícito
consiste em atrair o espectador para dentro da cena, despertar
as suas faculdades críticas e avaliativas e suscitar nele
uma resposta que contribua para a força dramática
do texto.[21] Por consequência, Connor distancia o trabalho
de Tucídides da antiga
oratória e aproxima-o da novela moderna, nomeadamente, de Jane Austen, pela forma como a autora inglesa lida com emoções mais profundas
do que as que aparecem à superfície do texto, pela forma como esta estimula o leitor a ler para além do que está escrito.
Por fim, o cerco
de Siracusa é um
entre tantos episódios onde se descreve
com fulgurante realismo as estratégias militares, os avanços e recuos,
vitórias e derrotas no assalto
e defesa de uma fortaleza. Mais uma vez, o pormenor, a vividez,
o movimento, a acção-reacção, a tensão dramática, o suspense são as tintas usadas para dar vida a uma cena que desperta
automaticamente a imaginação do leitor e apela à sua capacidade de refiguração. Quem lê não pode deixar de ver a cena com os olhos da mente. O cerco de Siracusa estende-se por vários capítulos (6.96-104) e o mais difícil é escolher
um excerto, sendo todos eles ótimos
exemplos de ekphrasis. No curto passo que transcrevemos, destacamos o emprego
da lítotes, como forma de reforçar
a influência de Hermócrates na decisão
dos Siracusanos de construir
um muro (Thuc. 6. 99.1-2).
No dia seguinte, uma parte dos Atenienses trabalhava no muro a norte da fortificação
circular e os outros, acarretando pedras e madeira, empilhavam-nas, sem interrupção, em direcção ao lugar chamado de Tróguilo,
por onde ficava mais curto para
eles a passagem do Grande Porto
ao outro
mar. Os Siracusanos – e dos generais
não era Hermócrates quem menos influenciava a sua decisão – já não queriam mais correr o risco de defrontar
com todos os seus efetivos os Atenienses, mas parecia-lhes que a decisão
mais acertada era ir erguendo um muro que cortasse
a direito por onde o inimigo pretendia passar com o seu e, se conseguissem adiantar-se, cortarem-lhes a
passagem.
Todo estes recortes do texto tucididiano têm como finalidade demonstrar a mestria
do historiador na produção de enargeia, causando no leitor os mesmos sentimentos de espanto
e de comoção que sentiram
aqueles que presenciaram os acontecimentos.[22] Numa história assente, essencialmente, no testemunho do olhar (autopsia), percebe-se
que
a ekphrasis seja um instrumento privilegiado para fazer ver.[23] Nesse sentido, é curiosa
a observação de Webb, de que a ekphrasis não procurava representar a realidade mas a percepção que se teve da realidade, ou seja, a forma como se vê a realidade.[24] Através da ekphrasis, o orador,
poeta ou historiador
procurava partilhar com o seu auditório ou leitores a imagem que lhe ficou na retina de uma determinada realidade. A
palavra procurava
assim estimular um acto de ver, não
com olhos mas com a mente. Em suma, a ekphrasis está em consonância com o programa de Tucídides, quando promete fornecer uma imagem clara (τὸ σαφὲς σκοπεῖν) ou um conhecimento claro (σαφῶς εἰδέναι) dos acontecimentos.
A ekphrasis
está também em consonância com a ideia de mimesis. Tucídides pode afectar
emocionalmente os seus leitores porque representa emoções e caracteres reais. Representando caracteres e emoções reais, o historiador obtém, por correspondência, um efeito ético e pathético sobre os leitores.[25] A mimesis, tal como foi aplicada
à teoria historiográfica, significava a recriação da realidade, abrangendo carácter e emoção.[26] Põe-se a tónica
mais na imitação ou recriação da realidade do que na construção da intriga,
mas não há um afastamento total do sentido aristotélico do termo. A mimesis da natureza
e da vida envolve a mimesis do carácter e da emoção.
E este tipo de mimesis é o que é usado tanto pela história
como pela retórica
e permite o efeito persuasivo e emocional
sobre os ouvintes ou leitores. No caso da história,
mimesis aplica-se quer à narrativa
quer aos discursos: a narrativa deve imitar o carácter e as emoções do historiador; os discursos, o carácter e as emoções dos oradores. Para recriar os caracteres
e as emoções reais, os oradores
e os historiadores deviam
usar os artifícios linguísticos que melhor
permitissem essa identificação, ou seja, a linguagem devia imitar a própria
vida, o texto devia organizar-se de tal modo que fizesse ver, como uma lente,
os acontecimentos tal como aconteceram.[27] Era nisto que consistia
a mimesis. E é assim que a vemos trabalhada com
mestria por Tucídides e por todos os historiadores que daí em diante representam o passado ou o presente. Podemos, pois, concluir, com Ginzburg,
que para a historiografia clássica “la vérité historique dépendait de l’evidentia (mot par lequel Quintilien rendait enargeia en latin); non de l’évidence”.[28]
Esta forma de fazer história vigorou durante muitos séculos e não é fácil estabelecer uma data precisa para a mudança para uma história
científica. A história metódica, dita, abusivamente, “positivista”, surge em grande escala no século XIX. Não obstante,
a crítica interna
e externa de fontes e a erudição que haveria de conduzir
à elaboração do rigoroso método científico de finais
do século XIX começa a desenhar-se a partir dos séculos
XV, XVI e XVII, com a ruptura
operada pela invenção
da crítica de fontes
de Lorenzo Valla e a disciplina
diplomática de Mabillon.[29] Porém, este abismo metodológico e epistemológico que separa Tucídides
dos pais da história moderna não impediu
que estes últimos
o adotassem como figura
tutelar. Ranke, Macauley et Eduard Meyer consideravam Tucídides um historiador modelo.[30] Niebuhr admirava-o e Ranke terá cunhado
a divisa “os factos tal como realmente aconteceram” na expressão tucididiana “os factos em si mesmos”
(αὐτὰ τὰ ἔργα). Esta adoção pode parecer paradoxal.[31] Porém, a nosso ver, vários fatores podem ter
contribuído para ela. Estes historiadores talvez acreditassem que Tucídides
tinha feito um trabalho
digno de confiança
científica. Estes historiadores, mesmo
que desconfiassem ou desvalorizassem a prática
de Tucídides, não podiam deixar de ficar impressionados com o poderoso programa metodológico que Tucídides instituiu para si próprio
e que fazia da busca da verdade, da objetividade e do rigor uma obsessão. Finalmente, estes historiadores, ainda que rejeitassem, veementemente, a enargeia como recurso retórico-ficcional, acreditavam como Tucídides
no poder especular da narrativa; considerando o discurso
histórico como uma lente transparente do passado,
isto é, entendiam
a mimesis histórica da mesma forma que Tucídides.
Esta crença ingénua
no
poder mimético-duplicador da narrativa
está hoje completamente censurada, graças às acertadas mas, por vezes, excessivas, intervenções de Hayden White,[32] Roland Barthes,[33] entre outros. Estes autores reagem contra uma ideia positivista e neopositivista de história.[34] Sem querermos entrar agora nos meandros
das teses de cada um deles ou doutros
que comungaram dos mesmos princípios, reduziremos (correndo o risco de uma generalização simplista) o efeito das suas teorias a uma simples
ideia. Cada um, à sua maneira
(narrativismo e estruturalismo têm pontos
de contacto mas não se confundem), chamam-nos à atenção para um facto assinalável: existe uma clivagem
insuperável entre o real passado e a construção narrativa do historiador, ou entre facto empírico e facto histórico. Que é que isto significa? Que a obra histórica
nunca é um espelho
do passado e que nenhuma
história nos pode transmitir as coisas
tal como aconteceram. Até aqui, tudo bem. A maior parte dos historiadores e dos filósofos subscreveria o argumento. O problema
surgiu quando se começou
a pôr em causa a capacidade da história
para dizer quer o passado quer a verdade. E daí até à abolição da fronteira entre história e ficção foi um passo. Sabemos como esta onda relativista da pós-modernidade, que ameaçou
a credibilidade da história enquanto prática científica, gerou um coro de protestos, a começar por Ginzburg, que se envolveu numa intenso
debate com Hayden White.[35]
Ricœur terá
sido aquele que melhor soube conciliar e
superar as várias posições que marcaram
o debate histórico
ao longo do século XX. O filósofo
francês apoia a ideia
de que não podemos confundir o acontecimento nem com o facto testemunhado nem com o facto narrado
pelo historiador. Contudo,
equilibra esta convicção com um contrapeso muito importante: é que não se pode deixar o facto histórico
dissolver-se na narração, nem esta numa composição literária que não se distinga da ficção.[36] Diferentemente do romancista, o historiador, por intermédio
de um documento ou de uma prova documental, tenta reconstruir um passado que qualificamos de real, algo que um dia aconteceu, mas que já não existe, a não ser nas marcas que deixou. O autor de Temps et récit não se cansa de insistir
na assimetria inegável dos métodos que história
e ficção usam para se dirigir à realidade: a historiografia tem a obrigação da verdade e o
que lhe resta
do acontecimento passado
confere-lhe uma nota realista inalcançável mesmo pela literatura mais “realista”. O historiador é um realista, não na aceção positivista e empiricista recebida
da história de Ranke, mas porque considera que há uma realidade
distinta do acto através do qual conhece
essa realidade. Para Ricœur, a ideia de um referente passível
de ser reconstruído pelo historiador é basilar.[37]
Em La mémoire, l’histoire, l’oubli, Ricœur estabelece três momentos ou fases principais na epistemologia da história,
sendo o primeiro
o da prova documental, o segundo da compreensão/explicação e o terceiro
da representação. A primeira fase vai da declaração das testemunhas oculares
à constituição dos arquivos
e visa o estabelecimento da prova documental. A segunda
concerne os variados usos do conector
“porque” como resposta ao “porquê?”: porque é que as coisas se passaram deste modo e não de outro? A fase representativa diz respeito à “mise en intrigue” ou configuração literária do discurso
que se apresenta aos
leitores. As três fases estão interligadas sem qualquer ordem sequencial cronológica, havendo escrita e interpretação em todas elas. Por conseguinte, não podemos desligar a escritura
da história dos momentos
de pesquisa e explicação. Cada um deles põe em relevo questões
e aporias que concernem a relação
história-ficção. Há, no entanto,
uma progressão da operação
histórica da primeira
para a terceira fase, que diz respeito
à manifestação da intenção histórica de reconstrução verdadeira do passado: “Ce n’est que dans la troisième phase en effet que se déclare ouvertement […] l’intention de représenter en vérité
les choses passées, par quoi se définit face à la mémoire le projet cognitif et pratique
de l’histoire telle que l’écrivent les historiens de métier”.[38] O que Ricœur propõe é uma tese que dê conta da especificidade da referencialidade na historiografia. Esta não pode ser vista exclusivamente ao nível das figuras do discurso histórico, mas deve realizar todo o percurso
da epistemologia histórica, que parte da prova documental, passa pelo
estádio de explicação/compreensão e termina na configuração literária. “Cette
triple membrure reste le secret de la connaissance historique”.[39]
Ainda assim, Ricœur nunca deixou de reconhecer quer uma dimensão
ficcional inerente
a toda narrativa, quer a necessidade de em determinadas situações se recorrer à ficção, nomeadamente, à sua
faculdade de “fazer-ver”, com o propósito de se pôr em relevo determinado tipo de acontecimentos que têm fortes implicações éticas. É aqui que se ligam a enargeia tucididiana e a ficção ricoeuriana. É por esta via, podemos dizer, que se dá o regresso da ekphrasis ao ateliê do historiador.
Começamos por dizer que em La Mémoire,
l’histoire, l’oubli, Ricœur desenvolve uma série de reflexões em torno da intercessão entre legibilidade e visibilidade ao nível da receção do texto literário. É neste ponto em concreto
que faz mais sentido falar de ficção
histórica ou ficção
científica a propósito
de história. Uma narrativa
histórica é uma tapeçaria, tem quadro
e sequência, imagem e história
ou ainda descrição e narração.
Ricœur afirma que “a narrativa dá a compreender e a ver”.[40]
Contudo, a visibilidade não provém só deste entrecruzamento da faceta mais imagética com a sequencial; por outras palavras, a simbiose
entre visibilidade e legibilidade não se resume à descrição de uma situação, de uma paisagem, de uma batalha,
de lugares, de uma figura,
de um comportamento ou de um carácter. Em qualquer situação,
a narrativa coloca-nos algo diante dos olhos, dá a ver. Esta capacidade surge aliada à marca distintiva da retórica,
a capacidade de persuadir, que por sua vez está na origem de todos os prestígios que a imaginação pode retirar da visibilidade produzida pelas figuras de estilo. A própria legibilidade só por si produz visibilidade, na medida em que a narrativa
dá a ler, põe sob os olhos, para nos persuadir e tornar mais convincente ou verosímil o que transmite. Por outras palavras,
a retórica discursiva, o “fazer-ver”, é uma consequência do próprio
acto de mise en intrigue.
Os prestígios da imagem descritos
por Louis Marin[41] ajudam Ricœur a desenvolver a ideia que lhe surgira
já em Temps et récit III, a propósito
da ficcionalização da história, de que os prestígios retóricos da imagem servem
para criar uma ilusão controlada da presença
daqueles acontecimentos unicamente únicos que despertam numa comunidade intensos sentimentos
éticos, seja de comemoração fervorosa
seja de execração.
Mais do que qualquer
outra, a história
do sofrimento e do horror grita por justiça e apela para a narração.
Há acontecimentos, como Auschwitz, que são únicos na história da humanidade e aos quais
o historiador deve conferir
a vividez imagética
que suplante o esquecimento. Cabe ao imaginário de representância “pintar”, “colocando diante dos olhos”, esses acontecimentos inaceitáveis, configurando a narrativa
das vítimas, preservando a memória
do sofrimento. A historiografia pode ser sem memória,
quando a simples curiosidade a anima; com o auxílio da ficção ao serviço do inesquecível, a historiografia iguala-se à memória,
na medida em que produz uma imagem
do passado. Deste modo, a força (de)monstrativa do ícone é posta ao serviço da historiografia e, através dela, do acontecimento que narra. Não obstante, esta imagem nunca é uma cópia do acontecimento, porquanto só a memória
pode produzir cópias do acontecimento; mas a própria
memória, arquivada, sofre um distanciamento crítico que impede
uma recuperação exacta
do original.
Apesar de tudo, através
do ter-sido do passado, a intencionalidade histórica, sob a modalidade de representância ou reconstrução narrativa, visa o que realmente aconteceu
e capta-o, com ajuda da imaginação e dos tropos da tradição
literária, tal como aconteceu. A retórica,
a ficção, mais do que um obstáculo torna-se, pois, um precioso instrumento de representação do passado,
fazendo com que a história
se aproxime da capacidade imagética e reconhecedora da memória.
Acontecimentos que geram numa comunidade intensos sentimentos éticos, seja de comemoração fervorosa seja de condenação, não podem ser objecto de uma neutralização ética, com base no argumento
técnico de que o historiador se deve distanciar do objecto
para melhor o compreender e explicar. Obviamente, tal não implica
abdicar da regra da imparcialidade e da objectividade, apenas que se tenha em consideração o princípio ético. O valor da
ficção, neste caso específico, reside
no seu poder de quase-intuição, na criação
da “ilusão da presença”, ilusão controlada pela distância crítica. Esta ilusão não tem como função agradar ou distrair,
antes, estar ao serviço da individuação do unicamente único, efeito do horror ou da admiração. E, sem esta quase-intuição da ficção,
ficaríamos cegos e insensíveis perante o horror.
“A ficção dá olhos ao narrador horripilado. Olhos para
ver e para chorar”.[42]
O que Ricœur afirma, e nós vemos
acontecer em Tucídides, é que, fundindo-se com a história,
a ficção fá-la remontar
à sua origem comum na epopeia. O que a epopeia
tinha feito no domínio do admirável
e do grandioso, transmitindo e preservando a glória efémera
dos heróis, a legenda
das vítimas – como uma espécie de epopeia
negativa que preserva a memória
do sofrimento – fá-lo no domínio
do horrível.
É, precisamente, este esforço
que podemos interpretar em Tucídides e que leva o próprio
Ricœur a admitir um ponto de contacto entre o aedo e o histor.[43]
Por muito que recuse engrandecer os feitos que narra com um tipo de ficção ilegítima, to mythodes, o historiador ateniense não evita o recurso
a um outro tipo de ficção legítima,
a ekphrasis e enargeia, para acentuar
e engrandecer o pendor trágico- pessimista que se reconhece
na sua obra e fazem dela uma epopeia
negativa da guerra. Tucídides
mostra-se particularmente impressionado pelas reviravoltas da guerra,
pelo carácter dramático
de um conflito que devia terminar
com a aniquilação de um dos adversários, mas que até ao fim reservará surpresas. Impressiona-o a sucessão
ininterrupta de acontecimentos violentos causados pelo antagonismo das duas potências em confronto, a destruição das cidades,
a escravização das mulheres
e das crianças
e a execução dos homens,
as revoluções que sucedem
os golpes de estado, a dispersão e o desmantelamento das famílias,
os assassinos que passam por heróis e os imprudentes aventureiros que são tidos por chefes audaciosos. A guerra
provoca uma inversão total dos valores conhecidos: as paixões
vencem e o patriotismo que suscitou
o combate não resiste
à loucura dos assassinatos e da violência. São muitos os passos que poderíamos citar, tantas são as referências às crueldades e perversões da guerra, mas em nenhum outro ponto da sua obra Tucídides se detém tão longamente nas censuras e na reprovação dos esquemas
e consequências da guerra (neste caso, a guerra civil, stasis, na Corcira)
como em 3.81-84.
Transcrevemos um excerto (Thuc. 3.81.
3 - 82.2):
A maior parte dos suplicantes, todos os que não se tinham deixado convencer, ao ver o sucedido,
mataram-se uns aos outros, ali, no templo;
alguns enforcaram-se em árvores e outros suicidaram-se como puderam. Durante os sete dias que permaneceu Eurimedonte, desde a sua chegada com os sessenta navios, os Corcireus assassinaram quem lhes parecia ser seus inimigos,
sob a acusação de quererem
derrubar a democracia, mas alguns morreram vítimas de ódios pessoais
e outros, que tinham contraído empréstimos de dinheiro,
morreram às mãos daqueles a quem deviam;
houve todo o género de mortes e, tal como costuma
acontecer em tais circunstâncias, não se recuou diante
de nada, pior ainda. O pai matava o seu filho e os suplicantes eram arrancados dos santuários ou eram mortos aí mesmo, alguns, inclusivamente, morreram emparedados no santuário
de
Dionísio.
Tal foi, com efeito, o grau de crueldade que atingiu
a guerra civil, e ainda o pareceu mais porque esta foi a primeira […]. Abateram-se muitos males sobre as cidades durante a guerra
civil, males que acontecem
e sempre acontecerão enquanto a natureza
dos homens for esta, piores ou mais brandos e cambiando de forma consoante as mudanças que ocorram em cada circunstância.
Na verdade, em tempos de paz e de prosperidade as cidades e os indivíduos têm melhores pensamentos por não terem de enfrentar
necessidades forçadas; a guerra, que suprime o bem-estar quotidiano, torna-se um professor
violento e acomoda às circunstâncias os sentimentos da
maioria.
Não é só o destino da Grécia que se encontra
revelado na narração
de Tucídides, é também
a própria essência
da guerra e da violência
colectiva: mesmo sem intenção,
o historiador faz-se moralista.[44] Tucídides não fica impávido
perante os horrores
da guerra; daí que se empenhe em transmitir com vividez imagética os factos.
Preocupado em estabelecer uma fronteira clara entre história de ficção,
o historiador ateniense fez bem em dar plasticidade literária ou intensidade emocional a eventos
bélicos que, devido ao seu carácter
dramático, não
podem ser tratados
com a frieza e a indiferença de meros factos científicos. Por conseguinte, estamos em crer que Tucídides perfilharia, se fosse possível vencer o hiato temporal,
a tese de Ricœur
de que a retórica
ficcional, mais do que um obstáculo
pode ser um indispensável instrumento de representação do passado,
na medida em que aproxima a história
da capacidade imagética
e reconhecedora da memória
- a primeira instância do conhecimento histórico.
CONCLUSÂO
Goldhill, perante este emprego tão frequente da ekphrasis na prosa tucididiana, clama que este não é o “objectivo e frio Tucídides”, mas “o retórico, que cega o leitor com a sua ciência e o desvia da análise para a confusão e para a paixão”.[45] Que a História da Guerra do Peloponeso tem uma forte influência da disciplina retórica não é novidade.[46] A questão
está em saber se objetividade e retórica,
ciência e ficção são realmente incompatíveis. Tucídides
é reconhecido assim:
por um lado, o escritor objectivo, imparcial, desapaixonado, árido; por outro lado, um mestre
na arte de envolver emocionalmente o leitor
e apelar à sua imaginação, através da construção de episódios
plenos de intensidade dramática, realismo, detalhes, vividez, numa palavra, ekphrasis.
Tucídides, historiador no sentido grego do termo (histor), é aquele que vê e faz ver. A opsis é ponto de partida
e ponto de chegada, é ponto de prefiguração e de refiguração.[47] No meio, a mimesis configuracional, mobilizada pela escrita, como elo entre o olho do historiador e a visão interior do leitor.
A retórica da visão e da imagem
perpassa o seu pensamento e o seu texto. A retórica
ensina a fazer ver com os olhos da mente,
ensina a construir imagens com as palavras,
a pôr sob os olhos de forma intensamente real, para persuadir, sensibilizar e mobilizar
o auditório. “Fazer ver” era, na verdade,
a qualidade mais importante do histor na Grécia antiga. Mais do que ter visto,
o histor devia “fazer ver”.[48] É esta qualidade que Hartog denomina
“evidência da história”,[49] Aristóteles institui como efeito retórico
da dictio ou lexis, e Ricœur estabelece como elemento fulcral
da representação histórica, sobretudo, em se
tratando de acontecimentos que demandam admiração ou
execração. É esta característica que encontramos magnificamente trabalhada na obra de Tucídides, da qual extraímos uma série de estratégias e de exemplos, e que vêm ao encontro das reflexões contemporâneas em torno de história e ficção, nomeadamente, as de Paul Ricœur. A tese do filósofo francês ajuda-nos a revalorizar, à luz de novas categorias do pensamento, o aspeto ecfrástico da obra de Tucídides, contribuindo para reforçar
a ideia da vitalidade perene da cultura
clássica e da convivência pacífica e necessária entre história e ficção, ciência e arte. Assim sendo,
como bem notou Zangara,
a historiografia antiga deixa de ser o lugar distante da origem de uma prática obsoleta, para ser o lugar do surgimento de uma aporia que é alvo constante
da reflexão contemporânea.[50]
Eis, pois, um elemento que a historiografia moderna, tão distante em termos de cientificidade e erudição da historiografia clássica, não conseguiu escamotear. Dando seguimento a uma tradição
que começa em Heródoto e tem em Tucídides
o seu expoente
máximo, o historiador moderno preocupa-se tanto em inquirir
como em “fazer ver”. E não somos os únicos a reconhecê-lo: “L’historien moderne imite ainsi Thucydide, assumant
la mission qu’il s’était originalement imposée: dire le fait en nous faisant voir comment les choses se sont effectivement passées” (itálico nosso).[51] Porque mostrar as coisas tal como elas se terão efetivamente passado é a melhor forma de fazer jus à memória; isto é, a modelização literária e todos os procedimentos de crítica
e construção narrativa (e, logo, visual), que lhe estão subjacentes, procuram conformar a história
com a memória individual e coletiva.[52]
MARTINHO TOMÉ MARTINS
SOARES
Centro de Estudos
Clássicos e Humanísticos (CECH)
Universidade de Coimbra
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[1] ZANKER (1981): “Enargeia in the Ancient Criticism
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dire c’est faire voir: l’évidence dans la rhétorique antique”;
WALKER (1993): “Enargeia and the Spectator
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après J.-C.
[2] O assunto tem sido alvo de múltiplas e amplas abordagens, sendo
extremamente difícil concentrar aqui uma lista bibliográfica substantiva. Em todo o caso, pondo de parte a área mais vasta dos Estudos Literários, deixamos
aqui nota de alguns dos mais significativos trabalhos que têm vindo a lume na área dos
Estudos Clássicos. Em Janeiro
de 2007, a revista Classical Philology dedica um número inteiro ao tema da ekphrasis, abrindo
com o importante artigo
de Simon GOLDHILL, “What is ekphrasis for?”. O mesmo autor foi co-editor, com Robin OSBORNE, em 1994, da obra Art and Text in Ancient Greek Culture, que consagra
vários artigos ao tema, sendo um deles o de Froma ZEITLIN, “The artful eye: vision, ekphrasis and spectacle in Euripidean theatre”. Em 2002, surge
o trabalho de Tim WHIRTHMARSH, “Written on the
body: ekphrasis, perception and
deception in Heliodorus’ Aethiopica”, inserido numa coletânea de textos consagrados à relação entre o verbal e o visual: Jaś
ELSNER (ed.), The Verbal and the Visual: Cultures of Ekphrasis
in Antiquity. Todavia, a autora que, a nosso ver, mais passos tem dado dentro deste campo é Ruth WEBB, que em 2009 publica Ekphrasis, imagination and persuasion in ancient
rhetorical theory and practice,
sendo que esta publicação é antecedida de uma série significativa de trabalhos, publicados em revistas, compilações e actas, em torno da mesma temática.
[3] Cf. GINZBURG (1999).
[4] Cf. CALAME (2007).
[5] Cf. RANCIÈRE (1992).
[6] PROST (2006) é um dos que destaca a importância da visibilidade literária
do texto historiográfico, dizendo que o historiador deve procurar
que o leitor consiga representar mentalmente aquilo que diz. Como? “Fazendo
apelo à sua imaginação e não somente
à sua razão” (273).
[7] RANCIÈRE (1992: 25-54) oferece-nos um bom exemplo de como os historiadores contemporâneos não podem evitar apelar
à imaginação do seu leitor. Basta
lembrar o capítulo
que dedica à análise
da morte do rei Filipe
II, narrada por Braudel
no capítulo final do Mediterrâneo e o mundo mediterrânico…Aí, contata Rancière, Braudel pega no leitor pela mão, fá-lo entrar no escritório do rei e fá-lo sentar-se na sua cadeira, para depois lhe
mostrar pormenores íntimos,
como a escrita do monarca.
[8] Já em finais do século XIX, Charles Seignobos chamava a atenção para a necessidade de ultrapassar o carácter abstracto e por vezes vazio de sentido, para a maioria dos leitores, dos conceitos empregues pelos historiadores. Dizia ele que o que é preciso é dar vida imagética ao texto, permitindo, antes de mais, que quem o leia consiga figurar mentalmente os homens e os acontecimentos narrados, desde o seu aspeto exterior até ao seu universo interior. A função primeira do historiador deveria consistir, antes de mais, em “fornecer representações”; in Ch. Seignobos, “L’enseignement de l’histoire comme instrument d’éducation politique”, p. 117; apud PROST (1996: 274).
[9] Neste sentido, como bem reconhece um dos maiores
historiadores contemporâneos, é enorme
a dívida dos historiadores para com Paul Ricœur:
“Les historiens savent
la dette qu’ils ont envers Paul Ricœur. […] Le livre de Ricœur les a aidés à être plus lucides sur leur propre pratique
et à comprendre comment
l’intention de vérité qui fonde leur discipline ne pouvait être séparée des parentés qui lient son écriture
à celle des récits
de fiction” CHARTIER (2002: 4).
[10] Na sua investigação, ZANKER (1981), apesar de reconhecer a utilização indiscriminada dos dois termos, conclui que o conceito de enargeia é anterior ao de ekphrasis e seus equivalentes (“descriptio”) e que um dos seus usos mais antigos se dá no campo da poesia: “’Ενάργεια can therefore safely be said to have been current as technical term in the criticism of poetry in the second century B.C. just as its use in historiography is attested for that century in Polybius and Agatharchides as we have seen; it thus seems to predate all the other literary terms for “visual description”; specifically relevant to poetry, as well as being central to all later literary and rhetorical theory on the subject” (307).
[11] Todas as traduções
do grego apresentadas são da responsabilidade do autor deste artigo.
[12] A propósito
desta relação entre leitor e espetador
em Tucídides, decorrente da técnica
de mise en abîme, veja-se
a interessante reflexão de WALKER (1993: 357-361).
[13] RICOEUR (2000: 342).
[14] BRUNT (1993: 403).
[15] HORNBLOWER (1987: 34).
[16] Cf. COCHRANE (1929).
[17] PARRY (1989).
[18] Parry contraria
as posições de COCHRANE (1929), FINLEY (1942), GOMME (1954) e ROMILLY (1956) a favor da descrição
da peste como um exercício científico
inspirado pela medicina hipocrática ou como registo
técnico de grande observação e precisão. Afirma, categoricamente, que, na descrição da peste, Tucídides nem segue o modelo
hipocrático nem usa linguagem
técnica.
[19] PARRY (1989:176): “It is in short the most sudden, most irrational, most incalculable, and most demoniac aspect of war in Thucydides’ view of history”.
[20] PARRY (1972: 56): “Strong verbal echoes confirm our sense that the Plague is presented as a kind of concentrated image of the War”.
[21] CONNOR (1984: 17): “The race of the two triremes is told with such vividness and involvement and the attitudes of the participants themselves provide such a clear assessment of the situation that the evaluation is inescapable”.
[22] Cf. GOLDHILL (2007: 5).
[23] GINZBURG (1989: 44): “De la même façon, il était donné à l’historien de transmettre sa propre expérience – directe, de témoin, ou indirecte – à ses lecteurs, en leur mettant sous les yeux une invisible réalité. L’enargeia était un instrument propre à communiquer l’autopsia, autrement dit la vue directe, par la force du style”.
[24] WEBB (2009: 38): “What is imitated in ekphrasis and enargeia is not reality, but the perception of reality. The word does not seek to represent, but to have an effect in the audience’s mind that mimics the act of seeing”.
[25] GRAY (1987: 473): “The effect of such mimesis could be ethical or pathetic, depending on whether it involved representation of character or emotion”.
[26] Sobre este assunto, veja-se o importante estudo de GRAY (1987).
[27] Diz CRANE (1996: 220): “Where Gorgias’ language is its own reality, and creates its own erga, Thucydides seeks to render language invisible, to make it a transparent lens directly onto the erga that are its subject. It is easy now to dismiss Thucydides’ fascination with objectivity as hopeless, even disingenuous, but Thucydides courageously championed a difficult, but essential, type of writing”.
[28] GINZBURG (1989: 46).
[29] Cf. DOSSE (2000). Sobre a separação entre história e erudição, a influência que esta separação tucididiana teve sobre o desenvolvimento da historiografia e a relação
entre a história
de Tucídides e a história positivista da Escola Metódica,
veja-se MOMIGLIANO (1984: 100-104).
[30] MOMIGLIANO (1992: 1).
[31] Esta adoção pode parecer
paradoxal por várias
razões. Em primeiro
lugar, Tucídides só achava possível
fazer história do tempo presente,
devido ao primado da autopsia
(observação directa dos factos) e os historiadores da Escola Metódica
rejeitavam este tipo de história,
em favor da história do passado. Diz HARTOG (1980 : 276): “Thucydide, pour qui seule l’histoire contemporaine est faisable,
va, de manière paradoxale, être promu au tout premier rang des historiens de l’Antiquité (au XIXe siècle), par des hommes,
pour qui l’histoire ne peut se faire qu’au passé: Thucydide historien du présent devient
un modèle pour des gens, les historiens “positivistes”, qui, par histoire, entendent histoire du passé”. Também é paradoxal
que uma Escola que, por esse motivo, dava tanto valor aos arquivos,
aos dados linguísticos, às escavações arqueológicas e às averiguações sistemáticas escolha como modelo um historiador que secundarizava ou mesmo dispensava essa erudição,
que não era de modo algum uma autoridade no estudo de fontes documentais, uma vez que tinha optado por uma história
contemporânea, logo, assente na visão e na memória
do historiador, na recolha
de testemunhos orais. Há ainda
outros factos paradoxais que causam estranheza. Diz MOMIGLIANO (1984:21): “La idealización de Tucídides como el historiador perfecto, en el siglo XIX, marca el momento en el que la historiografía moderna comenzó a crear verdaderamente tipos de investigación histórica desconocidos por el mundo clásico
(como historia económica, historia de las religiones y, más allá de ciertos
límites, historia cultural)”.
[32] H. WHITE publica, em 1973, a sua tese fundamental em Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe; Baltimore: Johns Hopkins UP. Seguiu-se, em 1985, Tropics of Discourse: essays in a cultural criticism, Baltimore and London: The Johns Hopkins UP.
[33] Os artigos
de R. BARTHES mais
importantes para o assunto
em questão encontram-se reunidos em Le Bruissement de la langue, Paris: Seuil, 1984.
[34] O Neopositivismo ou Positivismo Lógico tem como ponto de partida a célebre tese de C. HEMPEL (1942), The function of general
laws in history, onde se faz a apologia do chamado modelo nomológico (“covering law model”), de subsunção
ou lógico-dedutivo. Basicamente, o que esta teoria defende é que a explicação histórica não tem nada de específico e original,
pois segue o mesmo esquema que a explicação de um acontecimento físico,
como, por exemplo, a ruptura de um radiador de automóvel, uma avalanche
ou uma erupção vulcânica. Faz, portanto, a apologia
da função análoga das leis gerais em história
e nas ciências naturais, assente no princípio
fundamental de que uma explicação científica deve ser tal que dela logicamente se possa inferir
aquilo que se explica.
[35] Vide FRIEDLANDER (1992).
[36] RICOEUR (2000: 227) : “Autant
il faudra résister […] à la tentation
de dissoudre le fait historique dans la narration et celle-ci dans une composition littéraire indiscernable de la fiction,
autant il faut refuser la confusion
initiale entre fait historique et événement réel remémoré. Le fait n’est pas l’événement, lui-même
rendu à la vie
d’une conscience témoin, mais le
contenu d’un énoncé visant à la représenter. En ce sens, il faudrait toujours écrire : le fait que ceci ou cela est arrivé. Ainsi compris,
le fait peut être dit construit
par la procédure qui le dégage d’une série de documents dont on peut dire en retour qu’ils l’établissent”.
[37] RICOEUR (1983: 154) : “Seule l’historiographie peut revendiquer une référence
qui s’inscrit
dans l’empirie, dans la mesure où l’intentionnalité historique vise des événements qui ont effectivement eu lieu. Même si le passé n’est plus et si, selon l’expression d’Augustin, il ne peut être atteint que dans le présent du
passé, c’est-à-dire à travers les traces du passé, devenues documents
pour l’historien, il reste que le passé a eu lieu. L’événement passé,
aussi absent qu’il soit à la perception présente, n’en gouverne
pas moins l’intentionnalité historique, lui conférant une note réaliste que n’égalera jamais aucune littérature, fût-elle à prétention « réaliste
» ”.
[38] RICOEUR (2000: 171).
[39] RICOEUR (2000: 323).
[40] RICOEUR (2000: 341).
[41] MARIN (1981; 1993).
[42] RICOEUR (1985: 341).
[43] Numa nota de rodapé,
onde discute as diferenças
entre o aedo e o histor,
RICOEUR (2000: 173) sustenta que Heródoto, ao eleger como tema principal
das suas Histórias a preservação do kleos (renome)
dos Gregos e Bárbaros
e Tucídides, a grandeza
da guerra do Peloponeso, a maior de todas as guerras, aproximam-se ambos do aedo que compõe epopeias.
Apenas as epopeias dos historiadores são manifestos contra o esquecimento e contra o elogio, são epopeias
da reprovação. “On ne saurait toutefois parler d’une franche et définitive coupure entre l’aède et l’historien, ou, comme on dira plus loin, entre l’oralité et l’écriture. La lutte contre l’oubli et la culture
de l’éloge, face à la violence de l’histoire, sur fond de tragédie,
mobilisent toutes les énergies de la diction”.
[44] Cf. CHÂTELET (1962: 201-202).
[45] GOLDHILL (2007:6).
[46] Sobre a influência da Retórica
na obra de Tucídides veja-se: CRANE (1996: 209-258); MORAUX (1954); WOODMAN (1998).
[47] Com o regresso do acontecimento, da história
política e da história contemporânea, o “ver” (opsis) e o “fazer ver” voltam a estar na ordem do dia, tal como o papel fundamental da testemunha, com novas complexidades resultantes do protagonismo dos média. No que concerne
este assunto, veja-se a tese de HARTOG, Le miroir
d’Hérodote, no capítulo intitulado «L’oeil et l’oreille» (1980: 271- 316): “Mais l’événement ainsi exorcisé, fait “retour”
aujourd’hui, autre, produit
par les mass media, et la question
de l’histoire contemporaine se trouve donc à nouveau posée.
Or « le retour
de l’événement », n’est-ce pas aussi le retour de l’œil ? […] Mais précisément, cet événement qui fait retour, est mis en scène, et en se donnant à voir, il construit
son propre champ de visibilité : « Il n’est jamais sans reporter-spectateur ni spectateur-reporter, il est vu se faisant, et ce ‘voyeurisme’ donne à l’actualité à la fois sa spécificité par
rapport à l’histoire et son parfum déjà historique » ; donc l’autopsie si l’on veut, mais une autre autopsie
: construite” (276-277).
[48] HARTOG (2005: 236): “Être témoin n’a jamais été ni une condition
suffisante ni même une condition nécessaire pour être
historien. Mais cela, Thucydide déjà, nous l’avait appris.
L’autopsie elle- même devait
passer par le filtre
préalable de la critique.
Si l’on se déplace
maintenant de l’historien vers son récit, la question devient
: comment raconter comme si je l’avais vu (pour le faire voir au lecteur) ce que je n’ai pas vu et ne pouvais pas voir ?”.
[49] Cf. HARTOG (2005: 237).
[50] Cf. ZANGARA (2007:10).
[51] PIRES (2003: 141-142).
[52] CALAME (2005: 37).