LILIAN PESTRE DE ALMEIDA
A LUSITANIA LIBERATA OU A RESTAURAÇÃO PORTUGUESA EM IMAGENS: ANÁLISE ICONOLÓGICA DO CONJUNTO DAS GRAVURAS
DA OBRA DE ANTÓNIO DE SOUSA DE MACEDO.
The Lusitania
liberata or the
Portuguese Restoration in images. Iconological Analysis of the ensemble
of pictures from António
de Sousa de Macedo’s
book.
ABSTRACT: Iconological analysis of the ensemble of pictures from the Lusitania Liberata
published in London in 1645 and written by Antonio de Sousa Macedo.
The book is illustrated with 13 original prints of figures
of ancient or contemporary historical events. Written in Latin, it defends the Portuguese Restoration of 1640, using historical and legal arguments. Most of the images have not been subject to systematic analysis. The book is a work of
propaganda defending a nationalist thesis. The Lusitania
Liberata develops
its argument from the
rhetoric of a particular symbolic universe connected to Portuguese messianism.
KEY WORDS: Portuguese Restoration, iconological analysis, nationalist discourse, symbolic universe, messianism.
RESUMO: Análise iconológica do conjunto
das gravuras do volume Lusitania liberata publicado em Londres em 1645, de autoria de António
de Sousa de Macedo. A obra ilustrada com 13 gravuras originais sobre figuras e acontecimentos históricos, antigos e contemporâneos. e escrita em latim, defende
a Restauração portuguesa de 1640, com uma argumentação histórica e jurídica.
A maioria das imagens não foi ainda objeto de análise sistemática. Obra de propaganda e de defesa de uma tese nacionalista, a Lusitania Liberata desenvolve a sua argumentação retórica a partir
de um determinado universo simbólico ligado ao messianismo português..
PALAVRAS-CHAVE: Restauração portuguesa, análise iconológica, discurso nacionalista, universo simbólico, messianismo.
Fecha de Recepción: 10 de agosto de 2011.
Fecha de Aceptación: 26 de septiembre de 2011.
0. INTRODUÇÃO
Depois do desaparecimento
prematuro do rei D. Sebastião
no Norte de África, em Alcácer-Quibir em 1578 e da morte do seu sucessor,
o velho cardeal D. Henrique, em 1580, Portugal viveu cerca de 60 anos sob o domínio do ramo espanhol
dos Habsburgos. O período
também é conhecido como o da união das duas coroas. A monarquia dualista da dinastia
filipina, inaugurada oficialmente com as Cortes
de Tomar (Abril de
1581), confirma as pretensões de Felipe II de
Espanha, entre outros pretendentes, como rei de Portugal, sob o título
de Felipe Iº. Seus sucessores, Felipe III e IV de Espanha,
serão denominados respectivamente
Felipe II e III de Portugal
e como tal entram
em várias galerias
dos Reis de Portugal (por
exemplo, Galeria dos Reis, nos jardins episcopais de Castelo
Branco, do século XVIII).[1]
O período da união ibérica acumulará aos poucos descontentamentos que resultam na instauração da casa de Bragança como quarta dinastia reinante, a 1º de Dezembro de 1640 com o início do reinado de D. João IV e abrem a chamada
guerra da Restauração portuguesa. Durante 28 longos anos, portugueses e espanhóis permanecerão em guerra com
sucessivas invasões do pais ao Norte (Trás-os-Montes) e ao Sul (Alentejo), hostilidades que só cessarão
com a assinatura do tratado de paz de 1668 entre os dois países,
já com D. Pedro como príncipe regente do reino.[2]
Em meados do século XVII, precisamente em 1645, é publicado em Londres, num belíssimo volume ilustrado, o texto de um jurista,
Dr. António de Sousa de Macedo, intitulado Lusitania
liberata. A obra, escrita em latim, defende a causa portuguesa perante o público
culto e as cortes
estrangeiras. Alguns exemplares da obra pertencem a coleções
portuguesas: os 6 exemplares da Biblioteca Nacional de Lisboa e o do Arquivo
da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa.
O exemplar
pertencente à Misericórdia
está em muito bom
estado e é sobre ele que redigimos o presente texto. No Catálogo
das obras impressas no século XVII
da Colecção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa,[3] o volume é descrito,
sob o nº 369, como se segue:
MACEDO, António de Sousa de, 1606 - 1682.
Lvsitania liberata ab injusto Castellanorum dominio restitvta, legitimo Principi Serenissimo Ioanni IV. Lusitaniæ, Algarbiorum, Africæ, Arabiæ, Persiæ, Indiæ, Brasiliæ &c. Regi potentissimo; Summo Pontifici, imperio, regibus, rebus- publicis, cæterisq[ue] orbis christiani princibus/ demonstrata per D. Antonium
de Sousa de Macedo Lusitanum, aulæ generosum Regij Ordinis Cristo Equitem
…; Opvs historice-juridicum, materiarum varietate jacundum;
Complectens ultra principale institutum omnes Lusitaniæ notitias (quoad
terram, gentem, potentiam
& eventus ab orbe condito)
notatu digniores nec non plurimas
aliarum provincarum; Cum duplici indice altero capitum in principio voluminis altero rerum in fine … - Londini: in officinâ Richardi Heron, 1645. - 3 v. em 1 t.; 2º (30 cm). - Barbosa Machado
1 p. 401, NUC NS 0744931.
- V. 1: [3 br.], [27], 467, [1 br.] p. - Na p. [1] o retrato
de D. João IV. - Na p. [2] o fronstipício alegórico representando o triunfo do dragão da Casa de Bragança sobre o leão de Castela. - Na p. 58 o retrato de D. Afonso Henriques. - Na p. 93 a visão de Ourique.
- Na p. 143 o retrato de D. João I. - Na p. 165 a árvore genealógica dos descendentes de D. Manuel I. - Grav. John Droeshout. - Notas impr. marginais. - Assin.: [ ]6, A34, A64, A2, B-Z4, Aa-Zz4, Aaa-Nnn4, Ooo2. - V. 2: [2], 540 [i. é 70]p. - Na p. [2] a fénix renascida. - Grav. John Droeshout. - Notas impr. marginais. - Paginação
e assin. contínuas; paginado a partir de 471. - Assin.:
[ ]2, Ppp-Yyy4,
Zzz2. - V. 3: [2], 794 [i. é 252], [22]p. - Na p. [2] gravura
alegórica a representar o dragão da Casa de Bragança.
- Na p. 560 a sagração de D. João IV. - Na p. 650 o triunfo
de D. João IV. - Grav. John Droeshout. – Na
p. 708 o dragão
e a esfera armilar. - Na p. 764 o escudo das armas reais de Portugal.
- Na p. 792 alegoria
a D. João IV. - Grav. John Droeshout. - Notas impr. marginais. - Paginação
e assin contínuas. paginado a partir
de 543. - Assin.:
[ ]2,
Aaaa-Ssss4, Tttt6, Vvvv-Zzzz4, Aaaaa-Iiiii4, Kkkkk-Nnnnn2.
Algumas folhas manchadas e rasgadas
e encadernação rasgada
e com a pasta posterior solta.- Falta a folha "A2" da primeira
sequência.- Pert.: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.- Encadernação
portuguesa do século XVIII em pasta de
papelão revestida em pele castanha e decorada com dois frisos gravados
a seco e lombada decorada com frisos gravados a seco e motivos florais em dourado e o título em dourado.- Cota antiga: Est.13.C.5.L.15.- Documentação iconográfica: estampa
1, 24 e 25.
L.A.XVII.0609 1-3
A obra possui importante iconografia, tanto do ponto de vista plástico como histórico, em parte ainda pouco conhecida. São 13 gravuras
sobre figuras e acontecimentos históricos, antigos e contemporâneos. Das gravuras, apenas 5 foram republicadas em trabalhos
recentes: as nº 1, nº 3, nº 4, nº 9 e nº 11. Na internet, encontram-se facilmente quatro gravuras: a Figura alegórica final (nº 13), o Dragão e a esfera armilar (nº 11), o escudo de Portugal
(nº 12) assim como o Frontispício (nº 1), bastante conhecido.
A notícia acima, da autoria
de Júlio Caio Velloso, faz a listagem
não só de toda a série como propõe uma primeira identificação dos temas, sem esgotar-lhes evidentemente a significação.
Note-se, por um lado, que três gravuras da LL são reproduzidas no próprio Catálogo da Misericórdia de 1994, anteriormente citado: a estampa 1 com a sagração de D. João IV
, a estampa 24 com
o triunfo de D. João IV
e estampa 25 com
a visão de Ourique. Por outro lado, o retrato
de D. Afonso Henriques reproduz um modelo iconográfico bastante difundido. A tradição criou um modelo plástico do Fundador : um guerreiro de
longas barbas que
corresponde, de certa
forma, à imagem
de Carlos Magno, “l'empereur à la barbe fleurie”,[4] da Chanson de Roland. Enfim, duas outras estampas
da LL servem
de ilustração ao número 30/31
da revista Oceanos com
as seguintes
legendas:[5]
a)
na p. 91, D. João coroado
pelas figuras alegóricas da Justiça
e da Paz (imagem
correspondente, no Catálogo
da Misericórdia, à sagração de D. João IV) e
na
página 146, os astros auguram
bons sucessos ao Portugal
restaurado (imagem correspondente, no mesmo Catálogo, à gravura do escudo de Bragança e a esfera armilar).
Restam assim quatro gravuras, respectivamente: nº 5 (retrato
de D. João I), nº 6 (Árvore genealógica de D. Manuel I), nº 7 (A Fénix renascida), nº 8 (O dragão de Bragança junto à árvore)
hoje quase totalmente desconhecidas.
O volume de António de Sousa de Macedo constitui
um texto importante no debate sobre a Restauração de Portugal
e sustenta a ascensão à coroa do duque de Bragança,
apresentado pela propaganda espanhola como um rebelde e usurpador. É materialmente, sem dúvida, o mais belo volume publicado sobre Portugal no século XVII.
Consideramos aqui as 13 gravuras na ordem do seu aparecimento em confronto
com o texto que as acompanham. Assim, em cada gravura buscamos fazer uma leitura
articulada da mensagem
icónica e linguística. A relação
do texto com a imagem é, na maioria das vezes,
complementar e ideológica. Diante da polissemia (ou ambiguidade) da imagem, as inscrições em latim ancoram,
no espírito do leitor, um determinado significado que se torna,
assim, predominante e privilegiado. As inscrições latinas criam uma teia simbólica de significados que buscamos
destacar.
Observe-se por fim que as gravuras distribuem-se de forma irregular no volume:
seis gravuras no Livro I; uma no Livro II e seis no Livro III.
No Livro I, as duas primeiras gravuras ligam-se a acontecimentos contemporâneos: o retrato
do novo Rei português e o frontispício alegórico
com a luta dos dois animais simbólicos, o dragão e o leão, representando respectivamente Portugal
e Espanha. Seguem-se
os momentos fortes da evolução
do reino lusitano até a crise dinástica
de 1580: Afonso Henriques, considerado o fundador
da nacionalidade e o primeiro
rei da dinastia dita de Borgonha; os antecedentes da batalha de Ourique
contra os muçulmanos (25 de Julho de 1139), combate decisivo na luta para
a Reconquista do território; D. João I, o primeiro
rei da dinastia de Avis, vencedor da batalha de Aljubarrota contra os espanhóis (14 de Agosto de 1385) e conquistador de Ceuta (1415); a árvore genealógica de D. Manuel I, verdadeiro Jessé bíblico.
No livro II, a imagem da Fénix renascida
faz a transição
entre o passado
de Portugal
e a Restauração de 1640.
No livro III, todas as gravuras
sem excepção dizem respeito, direta ou indiretamente, ao novo rei português, D. João IV, da casa de Bragança.
1.
Uma palavra sobre o artista gravador, John Droeshut ou Droeshout
John Droeshut ou Droeshout (1596 – 1652) é o filho mais velho de um outro artista gravador, Martin Droeshut, responsável, segundo se acreditava, pelas gravuras do primeiro fólio de Shakespeare. A família,
originária dos Países Baixos, compõe-se de vários artistas gravadores, uns mais conhecidos do que outros. Recentemente June Schlueter[6] mostrou que o
pai, dito Martin o Velho, trabalhou igualmente em Madri e que deve-se atribuir a um outro filho, também chamado Martin, dito o Moço, a paternidade das gravuras
de Shakespeare. O conhecido dicionário Redgrave dá as seguintes
precisões sobre o nosso John Droeshout:
John Droeshout
(1596–1652), who may be identified with the John Droeshout mentioned above as an elder brother of Martin
Droeshout. He was employed
by booksellers, for whom he engraved
portraits of Arthur Johnston,
John Babington, Richard Elton, John Danes,
Jeffrey Hudson, and others,
besides other
frontispieces and broadsides. He also engraved
a set of plates to ‘Lusitania Liberata,’ by Don Antonio de Souza, including
some portraits of the kings of Portugal. In his will, dated 12 Jan. 1651–2,
and proved 18 March 1651–2 (P. C. C., Somerset
House, 55, Bowyer), he describes
himself as ‘of St. Bride's, Fleet Street, London, Ingraver,’ and mentions his wife Elizabeth, his nephew Martin, his two
sons-in-law, Isaac Daniell and
Thomas Alford, and his servant or apprentice, Thomas Stayno.
[Redgrave's Dict. of Artists; Nagler's Monogrammisten, iii. 2243, iv. 1733; Granger's Biogr. Hist.
of England; Bromley's
Cat. of Engraved
English Portraits; Lowndes's Bibl. Man.; information from Mr. W. J. C. Moens, F.S.A.;
authorities cited
above.]
Como contextualizar a publicação do volume da LL em Londres? D. António de Sousa de Macedo faz parte da embaixada
portuguesa enviada a Londres
desde 1641 em busca de apoio internacional para o movimento
português: tem o cargo de secretário. A Inglaterra é a grande aliada tradicional de Portugal
desde o reinado
de D. João I.
O rei inglês,
Carlos I, exigiu
inicialmente um documento
em que se declarassem as causas e as razões da revolução de Portugal, sem o que, nem ao menos queria admitir
os embaixadores. António de Sousa de Macedo
enviou então, a 12 de Março, ao secretário de estado do rei de Inglaterra uma carta em que largamente expunha todos os acontecimentos que tinham restabelecido a independência. O volume da LL constitui
o desenvolvimento das suas teses e dirige- se a todas as cortes estrangeiras.
No mesmo período envia igualmente uma Carta ao papa Urbano VIII sobre o mesmo assunto. Respondeu
também em espanhol
ao manifesto em favor do rei de Espanha,
publicado em 1641 pelo seu cronista D. José Pellizer.
Assinado o tratado
de aliança entre Portugal e a Inglaterra, a 29 de Janeiro
de 1642, D. Antão de Almada
e Francisco de Andrade Leitão voltaram a Lisboa, ficando António de Sousa de Macedo
como ministro residente na corte inglesa.
2.
A série das gravuras da Lusitania
liberata: imagens e textos As gravuras
do Livro I
Com excepção
das duas imagens
do Frontispício, as gravuras do Livro I cobrem o passado
de Portugal, da fundação do reino à árvore genealógica de D. Manuel. Esta será uma maneira de ilustrar
a crise de 1580.
GRAVURA Nº 1, LIVRO I, P. [1]: RETRATO DE D. JOÃO IV
Retrato em busto de D. João IV.
A moldura do retrato
é composta por um ouroboros.[7] A imagem da serpente com a cauda na
boca situa-se acima da cabeça real e
as letras dispostas sobre o corpo do animal compõem a palavra
ÆTERNITAS.
Nos quatro cantos da
gravura, em abreviatura, aparecem: o nome do soberano, IOAN IV REX 18 LVSIT. (João IV, 18º Rei da Lusitânia), sua idade (Æ 40) e o ano (An. 1644).
Abaixo está o texto:
Magnanimi, ostendit faciem pictura,
IOANNIS, At sola ostendunt inclyta facta animum.
De João, o
Magnânimo, a pintura mostra a face mas só os ínclitos
feitos apresentam a alma.
O retrato de D. João IV cumpre a função de divulgar a efígie do novo soberano.
Representado em busto, a cabeça descoberta destacando-se sobre uma simples gola branca e a couraça com a cruz de Avis atravessada por uma faixa de seda, João IV leva bigode fino e pequena
pêra sobre o queixo.
A simplicidade da representação é posta em realce pelo fundo de nuvens e raios e sobretudo
por dois elementos: uma filactéria e a moldura em forma de ouroboros.
A filactéria acima
da cabeça real leva a inscrição: Iustitia
de cœlo prospexit.
O ouroboros
a morder a sua própria cauda simboliza
um ciclo de evolução que se fecha sobre si mesmo.
O símbolo, muito conhecido, conjuga as ideias de movimento, de continuidade, de autofecundação e, em consequência, de eterno retorno. Sua significação é explicitada e reiterada
pela inscrição: Eternidade. Por outro
lado, a forma circular
da imagem da serpente
deu lugar à outra interpretação: a união do mundo terrestre, figurado pela serpente, com o mundo celeste, figurado pelo círculo. D. João IV torna-se assim, ao mesmo tempo, filho da terra lusitana
e eleito do céu. Sua subida ao trono deve-se à justiça
divina que o escolheu contra a tirania
dos Filipes .
O simbolismo da terra, como veremos, reaparece
em outras gravuras
da LL (a de nº 8, em particular) e o carácter
messiânico do soberano virá a ser um tema redundante em toda a série da LL.
GRAVURA Nº 2, LIVRO I, P. [2]: FRONTISPÍCIO ALEGÓRICO
O frontispício da LL é particularmente interessante. O dragão
coroado da Casa de Bragança
derrota o leão de Castela. Duas figuras femininas alegóricas
ladeiam o título e o resumo da obra.
Na parte superior da gravura
aparece a inscrição:
Ungue Leo fisus credit tenuis∫e
Draconen, Hoc docet exemplu breviter
violenta perire
sed, quia iustus, eum iam Draco fecit ouem solagz
inæternum viuere iusta
solent. O Leão fiando-se
nas suas unhas acreditou que
tivesse o Dragão
mas, porque justo, o Dragão
já fez dele ovelha
Isso mostra, como
exemplo, que a violência depressa perece e
como consolação, que a
justiça permanece para sempre.
As últimas inscrições aparecem
nas bandeirolas nas mãos das duas figuras femininas; uma vez mais se confirma
que o justo com a palma vence a opressão:
Iustus ut Palma Oppressa
crescit
HAEC VICIT
Deixamos de fazer a transcrição da cartela
uma vez que reproduzimos, na nossa introdução, a notícia do Catálogo da Misericórdia. O texto da cartela
enumera os títulos do novo Rei (Príncipe Sereníssimo de Portugal,
Algarve, África, Arábia etc.),
resume a obra e os seus propósitos.
O texto na parte superior da gravura
apresenta a luta dos dois animais, símbolos de Espanha e de Portugal,
como um apólogo
ou fábula: o Leão de Castela, arrogante e fiando-se
nas suas garras, atacou o Dragão de Bragança. Este, por ter a justiça do seu lado, lutou vitoriosamente e fez do leão uma ovelha.
A moral do apólogo
é consoladora: a violência fracassa e as ações justas alcançam a palma da vitória.
Na LL, a escolha do dragão como elemento
reiterado é significativa: a figura
simbólica voltará nas gravuras de nºs 8, 11 e 12. Ora quatro exemplos
da imagem do dragão
numa série de 13 gravuras, compõem um paradigma
que merece ser aprofundado. Na verdade,
aparecem dois tipos de dragão na LL: o dragão em ação, corpo erguido, de grandes
asas abertas (gravuras de nºs 2, 11 e 12) e o dragão deitado, aparentemente adormecido, sem asas (gravura nº 8).
O dragão do ponto de vista simbólico aparece essencialmente como guardião, muitas vezes com conotações demoníacas, o que, no entanto, não é o caso na LL. Em heráldica,[8] o dragão tem origem oriental; é uma forma compósita
de leão (a cabeça), de pássaro (as
garras), de réptil (corpo e
cauda), de morcego (asas)
e apresenta
muitas vezes uma língua dentada.
Como o basílico,
o dragão é citado no Salmo nº 91.
Ora o que nos parece interessante notar desde logo é que na LL, a forma simbólica
ligada à Casa de Bragança
é sempre o dragão e não, por exemplo,
a corda com os nós, outro símbolo bastante comum. A corda com os nós permite
um jogo de palavras (“Depois de vós, nós”),
jogo verbal posto em cena, por exemplo, na capela bragantina em Évora ou nas muralhas
do castelo de Évora Monte mas que não é nunca referido
na obra de António
de Sousa de Macedo.
Os nós marcam a casa dos duques de Bragança
como a mais importante do Reino depois da casa real, o que evidentemente não aproveitava aos propósitos ideológicos da LL.
Animal simbólico dos Bragança, o dragão aparecerá
aqui na sua ambivalência: terrestre-aquático e celeste; princípio ao mesmo tempo activo e elã espiritual, guardião
ctónico e regente
acima dos astros.
No frontispício da LL, o Dragão vence o Leão. Assim como Portugal vence Castela. Observe-se que o Dragão, na gravura, leva a coroa e o Leão, não. O Leão espanhol perdeu
a coroa lusitana.
Na parte inferior do frontispício, quatro imagens formam uma barra e articulam-se com a frase: REGES LUSITANI, QVIA PELICANI; IN HOC SIGNO VICERVNT ORBEM. O texto está disposto
em segmentos de forma a corresponder às quatro imagens.
Assim o escudo português
relaciona-se com o segmento
REGES LVSITANI; o ninho do pelicano com os seus filhotes
relaciona- se com o segmento
QVIA PELICANI; a cruz relaciona-se com o segmento IN HOC SIGNO,
repetindo o signo de Constantino e finalmente o globo terrestre relaciona-se com o segmento VICERVUNT
ORBEM.
Assim a parte inferior
da gravura apresenta um duplo discurso:
um par de imagens
de cariz religioso é enquadrado por uma dupla representação do poder monárquico português. Das quatro imagens, três são perfeitamente transparentes: o escudo, a cruz e o globo (ou esfera armilar). Seria talvez necessário insistir sobre o pelicano com
os
filhotes. O pelicano
é um símbolo tradicional do Cristo para inúmeros autores durante
toda a Idade Média e a iconografia é muito frequente. Dante chama o Cristo “il nostro Pellicano” (Par., XXV, 112).
O que importa
ressaltar é a articulação permanente do rei português (numa série de reis, no plural)
com a figura do próprio Cristo, tema que percorre
todo o volume.
GRAVURA Nº 3, LIVRO I, P. 58: RETRATO DE D. AFONSO HENRIQUES
A gravura tem a marca P gótico (Princeps) no canto inferior
direito. O retrato reproduz
a iconografia tradicional do fundador
do Reino de Portugal
e apresenta uma dupla inscrição:
a)
a primeira, em maiúsculas, na moldura que reza HENRICUS FVNDATOR REGNI LUSITANI ( Henrique, fundador
do reino
lusitano)
b)
a segunda, em cursiva,
na parte inferior, que reza:
Principium regno dando tollo mihi finem Cum vita in regno, sit sine
fine mihi
(Dando início ao Reino,
realizo o meu fim Mas
a minha vida no reino será
sem fim)[9]
Afonso Henriques, o fundador,
é representado de cabeça descoberta e armado de couraça.
Leva a espada sobre
a qual poisa a mão revestida com guante de ferro. O Reino português fundou-se na conquista contra os mouros. Com longos
cabelos e barba ao peito, o primeiro
rei português aparece como a origem da linhagem
real. A inscrição ressalta a perenidade da linhagem:
“minha vida no reino será sem fim”. O texto veicula
a ideia que a vida do Fundador
(isto é, o seu sangue e a sua acção) será sem fim porque continuará na sequência dos reis portugueses. Veremos mais tarde de que forma,
através de uma dupla linhagem:
uma masculina, outra feminina.
Do ponto de vista iconográfico, sua espada voltada para o chão opõe-se, numa relação
paradigmática, à espada
erguida de D. João I (cf. gravura
nº 5). Afonso Henriques cravou
no solo a espada marcando o território lusitano; D. João I ergueu a
sua salvando o Reino da invasão espanhola. Um delimitou um espaço,
o outro restaurou o Reino no século XIV. Os
dois gestos heróicos estão ligados do ponto de vista simbólico.
GRAVURA Nº 4, LIVRO I, P. 93: VISÃO DE OURIQUE
A gravura, de tamanho ligeiramente menor, representa a visão do primeiro rei de Portugal
antes da batalha de Ourique.
De todas as gravuras
da LL é sem dúvida a mais ingénua
do ponto de vista da composição e a mais ideologicamente marcada. Está assinada
(Drœshout ∫culp) no canto inferior esquerdo.
Quatro textos a acompanham:
a)
o primeiro, no alto da página,
glosa de certa
forma o título do volume:
Ad Lusitaniam liberatam
(à Lusitânia
liberada)
b)
o segundo identifica o personagem ajoelhado e de mãos postas
ao centro:
ALPHONSUS. HENRICVS.I.REX. LVSIT.
(Afonso Henriques, 1º Rei da Lusitânia)
c)
a frase em diagonal
estabelece a ligação
entre a visão celeste
e a cena terrestre, ou seja entre o Cristo
crucificado e o Rei de joelhos, súdito de Deus:
uolo in te et
in semine tuo imperium
mihi stabilire
O texto em diagonal
corresponde ao discurso
divino: é o próprio
Cristo que assume
o sentido da História de Portugal.
Trata-se de uma alusão transparente à linha masculina
de descendência dos Reis de Portugal.
Olhemos com atenção o discurso
de Cristo ao rei de joelhos.
Nossa primeira leitura
era: femine. Femine, aqui, seria então o ablativo
da palavra femen, feminis, cujo significado é fémur, coxa. Ou seja: quero em ti e no teu fémur estabelecer o meu império. Olhando a gravura
com mais atenção,
parece-nos – a fala do Cristo passa por cima dos anjos da auréola em torno da cruz, o que dificulta a sua leitura
– que a melhor
leitura é: semine.
Consideremos por um instante
as duas leituras: femine ou semine.
O fémur é considerado muitas vezes como o "osso do Pai". O simbolismo do osso desenvolve-se segundo dois eixos principais: o osso é o arcabouço
do corpo, seu elemento permanente; por outro lado, o osso contém
a medula, de que fala Rabelais:
la substantifique moëlle[10] (Gargantua, de 1534).
No primeiro caso, o osso é símbolo de firmeza, de continuidade viril, de força. O Génesis nesse caso refere-se ao osso dos meus ossos (Gen., 2, 23).
Por outro lado, femen, feminis é também a coxa. A coxa de Zeus, no interior da qual, segundo o mito grego, Dionísio conheceu
uma segunda gestação, foi objecto
de inúmeras
análises simbólicas,: essa outra gestação transforma o deus como o duas vezes nascido,
saído ao mesmo tempo do
corpo da sua mãe e do seu pai. Femine tem portanto claramente uma significação sexual e dinástica. A gravura
relacionar-se-ia ainda claramente com a gravura de n.º 6 que apresenta
D. Manuel como Jessé bíblico. O projecto divino, para Portugal,
é capaz de usar ora
o osso do
Pai (ou seja a coxa de D. Afonso Henriques), ora a mulher,
nova Eva. Veremos
mais adiante quem será essa figura – salvítica – feminina.
Se a melhor leitura
é semine , o significado sexual é ainda mais claro: do sémen do primeiro rei de Portugal nascerá uma linhagem messiânica.
Mais adiante, quando se fizer necessário, falar-se-á da linhagem
feminina tão importante na crise de 1580. Na gravura n.º 4 que se refere aos primórdios de Portugal e aos antecedentes de Ourique,
o que importa sublinhar é a linhagem masculina
da primeira dinastia.
d)
o quarto é o texto da inscrição
abaixo da gravura propriamente dita:
Quid mea miratur
mundus, quid facta meorum: Non ego, non illi,
sed, sibi, Christus agit.
(Que o mundo
admire os meus feitos,
quer os feitos dos meus: Não eu,
nem eles, mas Cristo
age por si mesmo).
O último texto corresponde ao discurso
atribuído à personagem: o Rei afirma
que o que fez e o que fizeram ou farão os seus, foi (e será) efeito da ação divina.
A passagem retoma e glosa,
de certa forma, S. Paulo (II Cor., 4, 4-9): “Por conseguinte, se o nosso evangelho
permanece velado, está velado para aqueles
que se perdem, para os incrédulos, dos quais o deus deste mundo obscureceu a inteligência, a fim de que não vejam brilhar a luz do evangelho
da glória de Cristo, que é a imagem de Deus. Não pregamos
a nós mesmos,
mas a Cristo Jesus, Senhor”.
A imagem é composta
por duas cenas: uma visão celeste,
no alto à esquerda
e uma cena terrestre
no primeiro plano à direita.
Na visão, o Cristo crucificado surge numa mandola
cercado de nuvens e de anjos. A Virgem está em destaque.
Na cena terrestre, o Rei despojado de suas armas (espada e escudo) e
de seus ornatos (chapéu de plumas, "talons rouges" à francesa, gibão de laços), de joelhos e mãos postas, vê a cena divina e ouve/recebe a mensagem
do Cristo. Observe-se o facto - curioso e deliberado - de o Rei inaugural
trajar à moda do
século XVII: o anacronismo no traje reforça
a identidade da figura medieval
(D. Afonso Henriques) com o soberano seiscentista (D. João IV).
A paisagem, em tonalidade mais apagada, tem cariz simbólico: árvores à direita e ao fundo; à esquerda,
um grande mosteiro. D.
Afonso Henriques aparece,
em bom número de gravuras,
do século XVII e sobretudo do século XVIII, como aquele que manda construir uma igreja
em agradecimento ao milagre de Ourique.
A visão de Ourique
retoma e nacionaliza, de certa forma, a visão de Constantino. Melhor ainda: “lusitaniza” a visão de Constantino. A tradição
afirma que a Afonso
Henriques, antes da batalha
de Ourique (25 de Julho de
1139), apareceu o Cristo na cruz. Não era só a vitória que Cristo prometia ao Rei cristão; era também a proteção
do Reino, glórias futuras, a fundação
de um império. Desse modo, a independência portuguesa assenta na vontade expressa de Deus e o povo português
assume o carácter de povo eleito.
No século XIX, Alexandre
Herculano refuta o milagre de Ourique a partir das fontes que a ele se referem.[11] É no final do século XV, provavelmente através do relato de Vasco Fernandes
de Lucena, embaixador de D. João II junto ao papa Inocêncio VIII, que surge a primeira menção explícita ao milagre.
A aparição do Cristo passará
a fazer parte integrante da História
de Portugal.
Mais tarde, no século XVII, com Bernardo de Brito,
na Chronica de Cister, a lenda ganha em precisão e prestígio. O monge cisterciense dá-lhe nova importância, conferindo a Portugal
e aos seus Reis uma missão divina.
Podemos, pois, considerar dois momentos na “história” ou “lenda” de Ourique: sua invenção
por Fernandes de Lucena e sua reinvenção ao tempo
do frade de Alcobaça. Note-se o paralelismo das conjunturas que levaram ao seu aparecimento no século XV e a sua reinvenção no século XVII. Em ambos os casos, num momento
de crise nacional,
afirma-se a autonomia
de Portugal, o carácter da sua eleição pelo próprio Cristo e a impossibilidade de sujeição
do reino lusitano
a soberanos estrangeiros.
Mas o conjunto
de gravuras da LL vai mais além: mais adiante,
ele afirmará o papel fundamental da mulher no projecto
divino. É da mulher,
Dona Catarina, esposa do 6º duque de
Bragança, que descende o novo Rei. Como se sabe,
a duquesa D. Catarina
desenvolveu notável actividade no momento da crise dinástica
de 1580 para que lhe fosse reconhecido o direito
ao trono por ser neta de D. Manuel I. Mas só em Dezembro de 1640 seu neto D. João, 8º duque, filho do 7º duque,
D. Teodósio, veio a subir ao trono.
É esse direito
ao trono que defende
a LL.
A casa de Bragança sobe pois ao trono no final de 1640 no meio de grande debate jurídico sobre quem é o Rei e quais as suas funções. O Direito exerceu grande influência na defesa da nova dinastia. Impunha-se demonstrar à Europa que, no momento da crise dinástica de 1580, face aos diferentes candidatos ao trono português, a coroa devia, por “benefício da representação”, ter cabido a Dona Catarina, duquesa de Bragança. Como filha do infante D. Duarte, a ela pertencia com justiça o trono de D. Manuel I, levando em conta ainda que a invasão de Filipe II de Espanha, pretendente pelo lado materno, violara os foros autênticos do reino antes da decisão oficial. A partir desta base “ilegal”, o governo dos três Filipes podia ser considerado ilegítimo e não aceite pela consciência dos Portugueses. O 8º duque de Bragança limitava-se, pois, a exercer o princípio jurídico da pertença à mais antiga casa senhorial do reino. Um grupo de jurisconsultos de 1640, como Francisco Velasco de Gouveia, António Pais Viegas, João Pinto Ribeiro e o nosso António de Sousa de Macedo, defendia assim a tese da “restituição” da coroa a D. João IV. Assim se justificava a designação de Restauração.
Uma segunda tese contemporânea justificaria a Restauração por outro caminho.
Baseava-se no princípio da alienação
do poder, que permitia aos povos expulsar
os soberanos que desrespeitassem o pactum subiectionis acordado com os súbditos. Deste ponto de vista, a soberania não era pertença dos reis, que apenas a exerciam por obra de um pacto natural: detinham assim os Reis o poder in actu, enquanto o povo o recebera in habitu. A doutrina é sustentada pelo jesuíta Francisco Suárez, o célebre
Doctor eximius, que ilustra
com a sua docência
a Universidade de Coimbra.
Assim sucedera com os três Reis espanhóis, o que tornava legítimo a ação do povo ao sagrar pela força do direito natural a realeza
de D. João IV.
Como o indica
Joaquim Veríssimo Serrão, no seu livro O Tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580 - 1668),[12] os diplomatas lusitanos tiveram que defender
estes princípios nas diferentes missões no estrangeiro. Contra a corrente
espanhola que afirmava ter o duque de Bragança
cometido um acto de rebeldia
e de usurpação, merecedor de punição,
foi preciso sustentar a razão do movimento aclamatório, como a vontade de povos livres que, ao longo de sessenta
anos, não haviam perdido o sentimento da sua autonomia.
Um tema reiterado impõe-se portanto em Portugal
no século XVII, que se pode semantizar como profecia, oráculo ou promessa. O tema foi glosado
de diferentes modos. Em 1641, António Pais Viegas descreve-o assim:
Este foy aquelle
venturoso a quien Cristo baixando
del Cielo dio le investidura y corona de um reyno,
que dixo escogia
para si quando
le hablo en la Cruz, honrandole desta
manera darle tal Reyno.[13]
No momento inicial, é o sémen do Pai ou o osso do Pai (o fémur, a coxa) que propiciará
a linhagem
da primeira dinastia. Resta-nos
considerar mais adiante o papel da mulher no projecto divino. Como D. João IV descende
de D. Manuel I pelo lado feminino,
será necessário exaltar
o papel da mulher.
Uma iconografia corrente na época implica
numa paráfrase indirecta ao papel de Maria, como nova Eva, na ordem da Salvação.
O mesmo tema reaparecerá, mais tarde, de forma paralela,
na oratória do Padre António
Vieira quando se trata de justificar a substituição de Afonso VI pelo seu irmão D. Pedro e o casamento deste com Dona Maria Francisca
Isabel.
Essa concepção da História
vista como um projecto
divino marca todo o século XVII português: ela reaparece
de forma transparente na LL nas gravuras sobre os reis que precedem D. João IV.
O génio de Fernando Pessoa, em A Mensagem
(publicado pela primeira vez em 1934), foi, entre outras coisas, dar forma poética
a tal ação subterrânea. O fato é facilmente apreendido na apresentação sintética do antepassado do Fundador
(ou seja o pai do pai):
O conde D. Henrique
Todo começo é involuntário. Deus é o
agente.
O herói a si assiste,
vário E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu
com esta espada?" Ergueste-a, e fez-se.[14]
Assim, a força do herói, instrumento de Deus, nasce do seu abandono confiante
à vontade divina.
Esta age, apesar do herói e também graças ao herói. O objecto
mágico (= a espada) aparece-lhe nas mãos e o homem aceita ser o instrumento do verdadeiro agente superior.
A mesma concepção
da ação reaparece
em outras gravuras
da série. GRAVURA Nº 5, LIVRO I, P. 143:
RETRATO DE D. JOÃO I.
Gravura pouco conhecida, não reproduzida em estudos
recentes.
O Rei português
é representado com couraça completa e capacete, a espada
nua erguida. Corresponde à mudança,
ocorrida na crise do século XIV, da primeira
para a segunda
dinastia: o Mestre de Avis torna-se
D. João I.
Os reis combatentes até agora apresentavam-se de couraça e cabeça nua. Era o caso de D. João IV e de D. Afonso Henriques. O primeiro
não levava espada,
o segundo
tem a sua apontada para a terra. O Rei aqui está armado dos pés (que não vemos) à cabeça e tem a coroa na espada erguida. A espada é o seu cetro. De forma reveladora, as insígnias
reais estão todas presentes: a coroa, a espada-cetro-mão de justiça, o brasão
de quinas sobre o escudo.
A gravura
apresenta três inscrições latinas:
a)
uma no alto da página
Sou∫æ Prœmium II (Proémio de Sousa)
b)
a segunda, em cima da imagem propriamente dita, identifica o personagem representado:
IOANNIS. I. REX. X. LVSITANIÆ
(João I, Décimo
Rei da Lusitânia)
c)
a terceira
é o dístico inferior:
Non minor est virtus, quam quærere
parta tueri; Ergo par
cunctis, laudibus, unus ero.
(Não é menor virtude contemplar do que buscar sua parte da
herança Assim eu, um
só, receberei igualmente ambos os louvores)
Na LL, a mudança de dinastia
alicerçada em e por Aljubarrota não podia faltar. A batalha tornada mítica decorreu
no final da tarde de 14 de Agosto de 1385, entre dois exércitos
reais: as tropas portuguesas com aliados
ingleses, comandadas por D. João I de Portugal
e o seu condestável, Nuno Álvares Pereira, e o exército
espanhol e seus aliados comandados por D. Juan I de Castela. O encontro
deu-se nas imediações da vila de Aljubarrota, entre as localidades de Leiria e Alcobaça, na região central
de Portugal. Seu resultado: a derrota
dos espanhóis,[15] a resolução
da crise dinastía
de 1383-1385 e a consolidação de D. João I como rei de Portugal, o primeiro da nova dinastia de Avis. A aliança
com a Inglaterra sai reforçada dessa batalha e seria confirmada no ano seguinte, com a assinatura do Tratado
de Windsor e o casamento do rei D. João I com D. Filipa de Lencastre, a mãe dos príncipes
da “ínclita geração” cantada por Camões (Lus., IV, estrofe 50).
Em agradecimento à vitória de Aljubarrota, D. João I mandou ergeur o Mosteiro
da Batalha. A paz com Castela
só viria a estabelecer-se em 1411 com o Tratado
de Ayllón, ratificado em 1423. Aljubarrota fornecia assim ao autor da LL um conjunto de paralelos
a ser desenvolvidos mais tarde: a resolução
de uma crise dinástica, a escolha do pretendente oriundo da terra lusitana,
a recusa da intervenção estrangeira e da tentação
de união com Espanha.
D. João I é
ao mesmo tempo o que procurou a sua herança
e que a contempla, deixando-se contemplar no espelho
do olhar dos seus súbditos.
A gravura
tem fundo neutro.
Leva a marca P gótico no canto inferior esquerdo.
GRAVURA Nº 6, LIVRO I, P. 165: A ÁRVORE GENEALÓGICA DOS DESCENDENTES DE D. MANUEL.
Imagem pouco conhecida e ainda não analisada
mas que serve de modelo a várias outras do mesmo período.
Gravura sobretudo fundamental para se entender as relações dos pretendentes ao trono português no momento da crise dinástica
de 1580. A representação do Rei português
toma de empréstimo o modelo iconográfico da árvore
de Jessé, antepassado humano do Cristo.
D. Manuel I, coroa à cabeça e o manto de arminho, apresenta-se deitado por terra. Um braço dobrado
sustenta-lhe a cabeça. Do seu baixo ventre e próxima à coxa, ergue-se a árvore
dos seus descendentes, todos coroados e nomeados.
Uns levam a coroa ducal, outros a coroa real. Cada descendente leva uma cartela que o identifica: de forma para nós, hoje, talvez paradoxal, os nomes masculinos inscrevem-se num círculo
e os nomes femininos, num losângulo.
A função
do texto aqui é particularmente importante, sobretudo didáctica. A legenda
abaixo reza:
Mascule dum fuerit, seruat
me, linea, viuum; Subsidium
extinetæ, fœmina, prolis,
erit.
(Enquanto foi viva a linha masculina serviu-me; Extinta,
será subsídio meu a feminina)
As pequenas
legendas, lidas de baixo para cima e da esquerda para a direita, indicam sucessivamente a descendência do Rei:
a)
na base da árvore:
Manuel, 14º Rei da Lusitânia;
b)
na primeira linha: Beatriz, duquesa de Sabóia;
a Imperatriz Isabel, esposa de Carlos V de Espanha;
João III, 15º Rei da Lusitânia; Luís, duque de Beja; o Cardeal
D.
Henrique, 17º rei da Lusitânia; Eduardo, Duque de Guimarães, todos já mortos;
c)
na segunda linha, temos: Manuel Felisberto, duque de Sabóia
(pretendente italiano); Filipe II, rei de Castela
(pretendente espanhol); D. João, príncipe de Lusitânia (já morto); António, prior do Crato (pretendente português); D. Maria, duquesa
de Parma (já morta)
e D. Catarina,
duquesa de Bragança
(pretendente portuguesa);
d)
no alto: D. Sebastião, 16º rei da Lusitânia
(já morto) e Rainulfo,
duque de Parma (pretendente italiano).
A árvore permite ainda ao leitor atento à sucessão dos reis portugueses, perceber
a sequência que
vai do 14º ao 17º soberano:
D. Manuel; seu filho, D. João III; seu bisneto, D. Sebastião uma vez que o seu pai, o infante D. João (1537 - 1554), morre pouco antes do seu nascimento; o Cardeal
D. Henrique.
O texto latino retoma uma vez mais a argumentação de exaltação da linha feminina quando se extingue a linha masculina. O simbolismo aqui confirma
a ideia de que uma figura feminina foi (e é) necessária à Salvação.
Da mesma forma que, do ponto de
vista teológico, Maria é a nova Eva porque permitiu o nascimento do novo Adão, isto é, o Cristo, do ponto de vista político,
D. Catarina de Bragança
“salvou” Portugal,
assegurando o direito
da linhagem da terra.
Relacionar a árvore de D. Manuel com o tema de Jessé é esclarecedor. O tema iconográfico é importante em toda a Europa entre o século XII e XVI, da Roménia a Portugal,
passando pela Inglaterra, França, Países Baixos, Itália, Espanha. Para os artistas,
trata-se de reunir, numa única imagem,
os antepassados humanos do Cristo. Jessé é o pai de David, a cuja linhagem
pertence o Messias
e corresponde às duas genealogias evangélicas de Mateus
e Lucas.
O público português conhece em especial
as esculturas nas igrejas franciscanas das cidades do Porto (Igreja da Venerável
Ordem Terceira) e de Guimarães
(Igreja de S. Francisco). Apresentar, na LL, o mesmo esquema
iconográfico de um antepassado deitado sobre a terra e sua descendência é reforçar
o paralelismo Cristo/Rei português e a continuação da função
messiânica graças à nova casa reinante portuguesa.
Como se sabe, a genealogia no AT faz-se sempre
pelos homens. Jesus, por José, faz parte da linhagem de David.
Os Evangelhos canônicos apresentam duas genealogias do Cristo:
a de Mateus (1, 1-17) e a de Lucas (3, 23-38).
A primeira, embora em três passos sublinhe influências estrangeiras pelo lado feminino
(Tamar, Raab, Rute),
limita-se à ascendência viril israelita de Jesus, destacando seus antepassados em três séries de duas vezes sete nomes e terminando pelo versículo 17: “Portanto, o total de gerações
é: de Abraão
até David, catorze gerações;
de David até o exílio na Babilônia, catorze gerações; e do exílio na Babilônia até o Cristo,
catorze gerações”.
Enquanto a genealogia de Mateus desce o rio do tempo, de Abraão a Jesus, a de Lucas (3, 23-38),
mais universalista, remonta de Jesus a Adão, fonte de toda a humanidade; ela começa assim: “Ao iniciar o ministério, Jesus tinha mais ou menos trinta anos e era, conforme
se supunha, filho de José, filho de Eli, filho de Matat...”
As duas listas de ancestrais do homem Jesus de Nazaré - cuja não-coincidência total não cabe aqui analisar
- tem José como fim (genealogia de Mateus que desce o rio do tempo) ou como início (genealogia de Lucas que sobe o rio do tempo) mas, em ambas, ele é apenas, do ponto de vista teológico cristão, o pai legal de Jesus: “a razão está em que, aos olhos dos antigos, a paternidade legal (por adoção, levirato etc.) basta para conferir
todos os direitos hereditários, aqui os de linhagem
davídica”. “Naturalmente”, continua a nota
que transcrevemos da Bíblia de Jerusalém,[16] “não se está excluindo
a possibilidade de Maria também ter pertencido a essa linhagem,
embora os evangelistas não o afirmem”.
Ora, é exatamente essa inserção da Virgem Maria, na linhagem de David, que será explicitada pelos Evangelhos apócrifos e por toda uma longa elaboração mítica.
Lembremos que a linhagem de David é transposta, plasticamente, no tema iconográfico da árvore de Jessé. Esta, do ponto de vista plástico, compõe-se de três elementos:
a)
a raiz, isto é, Jessé reclinado
ou deitado sobre a terra,
do qual nasce a árvore;[17]
b)
o tronco ramificado cujos ramos carregam os reis e os profetas, antepassados de Jesus e
c)
a flor que, inicialmente, será o Menino Jesus e depois, sua Mãe, a Virgem.
Segundo Louis Réau,[18] a partir
do século XVI, todas
as árvores de Jessé tornam-se árvores genealógicas da Virgem.[19]
A exaltação da Virgem está estreitamente ligada
ao desenvolvimento, a partir
do século XIII, do culto marial. Assim, a árvore de Jessé, imagem
plástica da linhagem
dos Reis de Judá de onde surge o grande lírio branco da Virgem sem mancha, torna-se um dos símbolos
mais constantes da Imaculada
Conceição, tema extremamente popular, do ponto de vista da arte ocidental, até às vésperas
da Reforma.
O tema feminino aparece igualmente na árvore de D. Manuel I. É pela linhagem
feminina que se assenta o direito
dos Bragança ao trono português.
2.2.
A gravura do Livro II
O Livro II da LL abre com a imagem do renascer
de Portugal.
GRAVURA Nº 7, LIVRO II, P.[2] : A FÉNIX RENASCIDA
Imagem pouco conhecida, ainda não analisada em estudos sobre o século XVII.
A gravura representa a Fénix que renasce da fogueira sobre um monte de pedras e no meio das chamas. No canto inferior esquerdo,
aparece a assinatura John Drœeshout ∫cu∫p.
Uma bandeirola acima da sua cabeça
leva a inscrição:
Ad Solem Justitiæ.
(Ao Sol
da Justiça).
Na parte inferior, aparece
o dístico: Mortalis moriar; sed, quo mihi
vita perennis, E
cinere insurgam morte redempta mea.
(Por ser mortal, morrerei;
mas
por aquele que é para mim
vida perene Ressurgirei das cinzas redimido da minha morte)
O pássaro Fénix, segundo os relatos de Heródoto
ou de Plutarco,
é um animal mítico, de origem etíope. De extraordinário esplendor, dotado de grande longevidade, tem o poder de renascer
das suas próprias cinzas. Quando chega a hora da sua morte, constrói
para si um leito de galhos perfumados e se consome
no seu próprio
calor. Os significados simbólicos aparecem claramente: ressurreição e imortalidade, ressurgência cíclica, triunfo sobre a morte.
Na LL, a Fénix representa a continuidade da linhagem
real portuguesa identificada à própria
terra.
A imagem tem ao centro um monte de pedras
sobre o qual arde o fogo onde se imola e renasce a Fénix.
Esta mira o Sol no alto à direita: os seus raios incidem directamente sobre o pássaro renascido. Ao longe,
dos dois lados, estende-se uma paisagem ampla de florestas
e montes.
Na gravura, o Sol, representado com rosto humano,
é uma manifestação da divindade. Trata-se, por outras palavras, de uma epifania
uraniana em que o poder divino e real identificam-se um ao outro.
O Sol como símbolo real e divino justifica-se porque o Sol não tem igual (Sol quia solis). A imagem lembra aos contemporâneos a supremacia do Sol entre os astros: tal como o príncipe
está acima de todos (= seus súditos),
o príncipe aproxima-se de Deus.
O estudo de Ilda Maria Assunção
e Silva Soares de Abreu[20] sobre o simbolismo e ideário político seiscentistas mostra a frequência com que é dada ao Rei o estatuto de Sol e aos seus conselheiros o estatuto
de Lua. O facto é corrente
não só em Portugal, em Espanha,
como em França
evidentemente.
Por outro lado, a Fénix como símbolo
de Majestade permite expressar a continuidade dos soberanos passados, presentes e futuros.
A Fénix que morre e ressuscita representa o Rei morto e o seu sucessor, o Rei vivo.
2.3.
As gravuras do Livro III
As gravuras do Livro III dizem todas respeito, direta ou indiretamente, à nova dinastia
dos Bragança e colocam a independência restaurada do reino de Portugal sob diferentes focos.
GRAVURA Nº 8, LIVRO III, P. [2]: O DRAGÃO DE BRAGANÇA AO PÉ DA ÁRVORE.
Talvez a mais bela (e obscura) gravura da série. Ainda não reproduzida em nenhum estudo, ao que sabemos.
Sem texto na parte superior,
leva apenas a inscrição:
In tempus, vigilo,
simulans dormire; neg ullum Iam timeo Alcidem,
Lysius arma colens.
(Até o fim dos tempos, alerta
vigio, parecendo dormir;
Já não temo Alcides nenhum:
Lísio empunha as armas)
Ou seja: Como Lísio, em armas,
já não temo nenhum
Alcides.
Vários arquétipos aqui se unem: a lembrança da árvore de Jessé que assegura
a permanência da linhagem dos reis portugueses; a árvore
do jardim das Hespérides com seus pomos dourados;
o dragão ctónico
(oriundo da terra) protegendo a promessa
de flores e frutos
de Portugal.
Observe-se que, nessa gravura,
o dragão não tem asas e parece
um enorme sáurio. O texto refere-se a duas figuras, Alcides e Lisius, como antepassados míticos, respectivamente da Espanha
e de Portugal.
Como lembra o leitor,
Luso aparece várias
vezes nos Lusíadas
(I, 39; III, 21; VIII, 2): é o filho e/ou companheiro de Baco que, segundo Camões, fixou-se em Portugal. Os eruditos da Renascença relacionavam esse nome com Lusitânia. O geógrafo
latino Plínio fala de um filho de Baco chamado Lysias ou Lysa e o y dito grego é transcrito em latim ora como i, ora como u. O próprio Camões faz alusão à dupla grafia:
Esta foi Lusitânia,
derivada
De Luso
ou Lysa,
que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela estão
os íncolas primeiros.
(Lus., III, 21)
Por outro lado, Alcides é um dos nomes de Hércules, descendente de Alceu. Camões assim se refere
ao herói em diferentes passos do seu poema: III, 137; IV, 49, 80; IX, 57. Os soberanos espanhóis se apresentavam como descendentes de Hércules: esse antepassado mítico explica,
por exemplo, a série de telas de Zurbarán sobre os feitos de Hércules no grande Salón de los Reinos,
criado por Velázquez
em 1635.
Assim: por temor de Alcides, ou seja, da invasão espanhola, Luso identificado com o dragão
da casa bragantina, vigia sem dormir, defendendo a árvore da terra.
Deitado ao pé da árvore central, como um anel protector, o dragão lembra
vagamente um ouroboros (cf.
o ouroboros que
circunda o retrato do novo rei na gravura 1). A árvore apresenta-se vicejante com folhagem
e frutos. À direita, no segundo plano, uma outra árvore esgalhada
e seca ergue-se:
sugere a linhagem
de D. Manuel interrompida ou a morte simbólica
da linhagem dos Filipes
em terras portuguesas.
A enxertia real viceja na nova árvore. A paisagem de terra fértil lembra que o corpo do rei é o corpo da terra. No universo
tradicional, a saúde do rei é a saúde da terra e dos produtos da terra. Um mau rei, ou um rei não legítimo,
provoca a esterilidade da terra.
Por outro lado, a continuidade do sangue real permite compreender a frase “O rei está morto,
viva o rei”.
A oposição Alcides vs Lísio presente no texto
latino reaparece na oposição das árvores seca vs viva. Veja-se sobretudo
a importância do arquétipo da árvore nessa gravura.
Para a árvore, Mircea Eliade sugere sete interpretações no seu texto clássico Traité de l'Histoire des religions:[21] elas se articulam todas em torno da ideia do Cosmos vivo em perpétua
regeneração. A
árvore põe em contacto
os três níveis
do cosmos: o subterrâneo pelas raízes que serpenteiam no solo, aprofundando-se; a superfície da terra pelo seu tronco e seus primeiros ramos; as alturas,
pelos ramos superiores e o seu cimo que se ergue em direcção à luz do sol.
Essa árvore teve o seu cimo cortado,
símbolo das perdas
sofridas e a sofrer durante a guerra com
Espanha mas o tronco mantém-se
forte e verdejante. A árvore do dragão é uma árvore cósmica e de vida, eixo do reino de Portugal. O dragão é o seu guardião.
GRAVURA Nº 9, LIVRO III, CAP. 3, P. 560: COROAÇÃO DE D. JOÃO IV.
A gravura
apresenta três legendas, sucessivamente, de alto para baixo:
a)
no alto a identificação do personagem representado: IOANNES
IV.REX LVSITANIÆ XVIII.
O número final corresponde à sequência
dos Reis de Portugal, de D. Afonso Henriques, incluindo os reis da crise dinástica, o rei Cardeal
e os três Filipes. Isso significa
que a LL não corta os Filipes,
como o fará, por exemplo,
o programa iconográfico da Galeria
dos Reis de Portugal em Fronteira, também do século XVII.
b)
no dossel acima do trono, o
texto da inscrição refere-se aos dois putti que
se abraçam
e beijam sobre nuvens e acima das armas de Portugal:
Justitia, et pax osculatæ
sunt.
(A Justiça e a Paz
se abraçam)
c)
sob o dossel,
duas figuras femininas identificadas como a Justiça
e a Paz, à esquerda
e à direita, erguem a coroa sobre a cabeça do novo Rei. Este, sentado no trono e
revestido com o
seu manto, ergue a mão de justiça. As duas
figuras ostentam os seus atributos
tradicionais: a Justiça,
a espada e a balança;
a Paz, um ramo de oliveira.
Ao pé da gravura, um dístico:
Non Bellona ferox, sed te
Pax alma coronat; Iustitiam melius pax comitare solet.
(Não a feroz Belona, mas a santa Paz te coroa; a Paz costuma acompanhar melhor a
Justiça)
Traduziu-se Pax alma por santa, uma vez que na liturgia diz-se, numa das antífonas
de N. Sra., “Alma redemptoris mater”, confirmando que alma , no caso, é adjectivo.
A professora Maria Helena
Kopschitz me fêz observar
que o texto colocado acima das armas de Portugal retoma ipsis litteris um
versículo 11 do Salmo 84 (85):
Misericordia et veritas
obviaverunt sibi; Iustitia et pax osculatae sunt.
Na Vulgata, o Salmo 84 (85), tem a epígrafe:
"Propinqua est salus nostra",
que a tradução de Matos Soares verte como: Oração pelo restabelecimento completo de Israel. A utilização
desse versículo confirma
uma vez mais a cultura
clássica e teológica do autor,
que articula Israel
e Portugal. Assim,
o domínio espanhol
em Portugal
corresponde simbolicamente ao tempo do exílio e cativeiro
(seja em Babilônia, seja no Egito).
Belona é a deusa romana da guerra,
figura durante muito tempo indefinida, identificada aos poucos com a deusa grega Enyô. Passa às vezes por ser a esposa de Marte. Opõe-se evidentemente à Paz. E esta acompanha a Justiça.
Na LL, trata-se
do segundo retrato
do Rei D. João IV: retrato não mais de pretendente ao trono ou combatente, mas de aparato,
sentado ao trono com as insígnias do poder.
GRAVURA Nº 10, LIVRO III, CAP. 9, P. 650: TRIUNFO DE D. JOÃO IV.
A gravura
apresenta-se dividida em três faixas:
a)
a faixa superior, mais larga, apresenta um cavaleiro
(D. João IV) sobre um cavalo na posição
dita en courbette, chapéu de plumas
à cabeça, bastão de comando numa das mãos sobre um fundo de batalha. A figura lembra os cavaleiros do grande lago de Fronteira e evidentemente os retratos equestres de Velázquez
do Museu do Prado.[22]
Leva uma inscrição na parte superior:
CAPVT IX.
Belli eventus
Lu∫itanorum victoriæ
ad-
ver∫us Ca∫tellanos.
b)
a faixa intermédia é constituída por grande natureza morta representando as armas e a bandeiras
vitoriosas dos Portugueses: tem ao centro o escudo português ladeado por dois putti, conjunto encimado
pela coroa do reino.
c)
a faixa inferior, mais estreita, leva a inscrição latina:
Nil mirum in te
ius, nil mirum in iure triumphes Nec melior, lux
huic, nec tibi causa foret.
(Não admira em ti o direito, nem
que pelo direito triunfes: Não
haveria para este melhor
luz, nem para ti melhor
causa)
A identificação do cavaleiro
como D. João IV coloca alguns problemas. Essa identificação, de certa forma, foi sugerida pela descrição
da LL feita por Júlio Caio Velloso
no volume da Misericórdia, que transcrevemos na nossa introdução. Na descrição erudita e extremamente precisa, o título dado à gravura
guia-se pelo texto e não pela imagem propriamente dita. Como muitas vezes
acontece, a imagem
é no entretanto mais polissémica do que o texto: este faz da imagem uma leitura redutora indicando ao espectador a significação posta em primeiro
plano.
Se adoptarmos o título
proposto "Triunfo de D. João IV",
é preciso compreender o que a palavra “triunfo”
significa exactamente. Note-se que o duque de Bragança
não tomou parte pessoalmente, nem como combatente nem como comandante, das batalhas da Restauração. Desse ponto de
vista, ele difere de Afonso Henriques e de D. João I, anteriormente representados nas gravuras já analisadas sobre Ourique e Aljubarrota. O primeiro
e o décimo Rei de Portugal são soberanos combatentes que alcançam
e confirmam o trono, espada na mão. Portanto, o retrato equestre de D. João IV não é um retrato feito após-batalha mas uma cena simbólica em que o cavalo funciona
como uma espécie de trono móvel, como bem analisou Julián Gállego para Filipe IV de Espanha.[23] A vitória do rei português
nasce, não de uma guerra vitoriosa, mas do seu direito
e do direito das suas gentes, argumento
de peso para um jurista, evidentemente: “não admira em ti o direito, nem que pelo direito triunfes”.
Voltando à imagem,
vemos que ela se compõe de duas cenas justapostas verticalmente:
a)
o retrato equestre sobre um fundo de batalha com a arremetida final vitoriosa
de cavaleiros e infantes, tendo no horizonte uma cidade fortificada e
b)
o arranjo com as armas em torno da coroa e do escudo de Portugal.
GRAVURA Nº 11, LIVRO III, APÊNDICE, P. 708: O DRAGÃO
E A ESFERA ARMILAR.
Belíssima gravura reproduzida na revista Oceanos,[24] à página 146, com o título “Os astros auguram
bons sucessos ao Portugal
restaurado”.
Representa o dragão
da Casa de Bragança
sobre a esfera armilar.
O animal fabuloso é visto de perfil
e tem acima da cabeça a coroa de louros da vitória.
A esfera representa de forma significativa várias constelações: Draco (o dragão) na parte superior
e na parte inferior,
a Fénix. A linha inclinada passa pelas constelações de Cetus (a Baleia), de Leo (o Leão) e da Lira.
Na parte superior uma primeira inscrição em maiúsculas reza: DOMINABITUR ASTRIS (é dominado pelos astros). O que implica em dizer que o sucesso
português estava escrito nos astros.
Abaixo da gravura,
um dístico latino completa
o sentido do decreto
astrológico
Iam sibi Lusyadum curpiunt caput, astra, Draconem;
Quod decreverunt Numina sacra Poli.
(Os astros já
escolheram a cabeça dos Lusíadas,
o Dragão O que
decretaram os numes sagrados para a cidade)
Na tradução da passagem,
o verbo curpiunt levanta problema, uma vez que não aparece registado
em dicionários. O sentido, no entanto, é claro.
Imagem e textos preparam
o leitor para o Apêndice da LL, todo ele centrado sobre as profecias
que anunciam o Desejado e/ou Restaurador. Um breve olhar sobre a página da direita
confirma a ligação deliberada entre o profetismo e a subida ao trono da Casa de Bragança.
O primeiro capítulo
do Apêndice ostenta
o título revelador:
CAPUT I.
Prophetiæ, ac notabilia de Lu∫itaniæ
eventibus jam vi
∫is in ejus
oppre∫∫ione, ac obtenta
libertate.
O projecto divino presente na gravura da visão de Ourique
completa-se aqui com a escrita inelutável dos
astros. Não deixa de ser interessante ver como a ideologia da LL utiliza diferentes discursos e argumentos: promessa antiga que vem de Ourique,
em que se insere
agora uma palavra sobre a função da mulher
na transmissão da coroa;
profetismo e volta do Desejado; crença na astrologia. O destino de Lisius (ou dos Lusos) é o destino do Dragão.
As demais constelações (Fenix, Cetus, Leo e Lira) têm igualmente carga simbólica. Em dois casos a conotação é redundante pois retoma de certa forma outras gravuras
da série. Fénix está liga da à ressurreição e retoma a gravura
nº 7. Leo se refere, uma vez mais, ao símbolo
dos Habsburgos espanhóis (cf. gravura nº 1). Duas outras constelações (Cetus e Lira) merecem que se aprofunde o seu significado
oculto.
Cetus é a Baleia.
Seu simbolismo remete ao
mesmo tempo à “Boca de
sombra” (ou seja ao discurso
profético obscuro) e ao peixe. Na Índia, Vishnou no seu avatar de peixe guia a arca sobre as águas do dilúvio. No mito bíblico de Jonas, a baleia é a própria arca:
a entrada de Jonas na baleia é a entrada
no período de obscuridade e morte iniciática. Sua saída é a ressurreição, a nova vida, como o mostra
ao mesmo tempo a tradição islâmica e a Cabala. Com efeito, como o indica Chevalier,
no seu Dictionnaire des symboles, nûn, vigésima
nona letra do alfabeto
árabe significa também peixe, e em particular baleia. Na Cabala, a ideia de novo nascimento, no sentido espiritual, prende-se a essa letra nûn. O período na Baleia corresponde ainda,
de certa forma, ao cativeiro ou exílio em terra da Babilônia ou do Egito.
A Lira, inventada
por Hermes ou por uma das
nove Musas, é o instrumento
de Apolo e de Orfeu. Mais geralmente, ela é o símbolo
e o instrumento da harmonia
cósmica.
Considerando as constelações tal como aparecem na esfera armilar, vemos que Draco opõe-se a Fénix, símbolo que se reitera de ressurreição. Na linha diagonal o Dragão subiu à parte superior
passando pela morte iniciática (a Baleia), venceu o Leão (de Castela)
e atingiu à harmonia (Lyra).
A esfera armilar constitui um símbolo
claramente português ligada à experiência do mar e da navegação. Ela permite que o navegante, guiando-se pelas estrelas, trace a sua rota.
Na verdade, essa gravura
pode ser relacionada como uma outra, praticamente do mesmo período, pertencente ao volume Philippus prudens, da autoria de Juan Caramuel y Lobkowitz, publicada em Antuérpia
em 1639. O frontispício dessa obra, citada aliás por António de Silva de Macedo na LL, apresenta a reunião das duas coroas como a vitória
do Leão sobre o Dragão numa determinada conjunção astrológica.[25]
A folha de rosto do volume Philippus
prudens poderia ser articulada igualmente com a folha de rosto da LL, uma vez que apresenta
a luta entre o Leão e o Dragão. No volume português, o Dragão vence o Leão; no texto espanhol, o Leão vence o Dragão.
Só a título de comparação, veja-se como se posicionam os astros em 1580:
Qualificado como “tema cosmológico” essa folha de rosto de Erasmus Quellin[26] resume numa
complicada alegoria a conquista de Portugal por felipe II em
1580.
O leão coroado e armado
com uma espada representa castela porque
este é o timbre ou
cimeira do seu escudo,
assim como o dragão
coroava as armas portuguesas. Os cículos que se entrecruzam representam aórbita da lua e a eclíptica. O ponto em que se encontram é conhecido
como “caput draconis” ou como “caiuda dargonis”: é o ponto em que se produzem os eclipses. Como se vê, situa-se sobre a cabeça do dragão. O leão ocupa a zona do círculo zodiacal
reservada a Virgo,
uma vez que a precessão
equinocial havia acabado com a correspondência entre os signos e as constelações.
O monstro assenta-se sobre umas esferas que representam o sistema
de orbes da Lua Segundo a tese de Ptolomeu.
As quinas portuguesas aparecem, não em escudetes, mas em lúnulas, simbolizando os reis mouros derrotados na batalha
de Ourique.
A interpretação é a seguinte: Portugal
nasce na batalha de Ourique e toma como armas as luas dos mulçumanos vencidos. É portanto,
a lua. Pois bem, a lua portuguesa é eclipsada
pelo leão castelhano, uma vez que o leão é a casa do sol. Deve-se
indicar que as contselações do Leão e da Hidra se situam na esfera
celeste de forma semelhante à do gravura, se bem que forma invertida. Esssa estranha alegoria se explica pela coincid~encia do eclipse lunar de 31 de Janeiro
de 1580, dia da morte do rei português que antecedeu
a Felipe II, o Cardeal
D. Henrique.
GRAVURA Nº 12, LIVRO III,
APÊNDICE, P. 764 : O ESCUDO DAS ARMAS REAIS DE
PORTUGAL
Duas figuras de anjos ladeiam o escudo português encimado
por um capacete militar coroado, tendo por trás o dragão da Casa de Bragança
de grandes asas abertas. A legenda
latina reza:
Lusiadum Regnum cujus vide stemmata
Christi, Mittit
enim rebus Stemmata quisque suis.
(Vê o Reino dos Lusíadas
com os estigmas de
Cristo Assim leve cada um os estigmas
do que é seu)
Na página à direita
o Capítulo III do Apêndice
anuncia:
CAPUT III
Stemma
Lu∫itani Scuti declaratur.
O texto da inscrição
merece certo desenvolvimento. Ele incita o espectador a contemplar o escudo português
como objecto sagrado pelas suas marcas (ou estigmas).
As armas do rei de Portugal
são descritas, do ponto de vista estrito da heráldica, por Anselmo Braamcap Freire da seguinte maneira:
De prata, cinco escudetes
de azul, postos em cruz e carregados cada um de cinco besantes do campo; bordadura
de vermelho carregada
de sete castelos de oiro. Coroa de florões fechada de dois meios círculos.
Timbre: serpe alada, nascente,
de oiro. Não tem letreiro. Vol. I, p. 32)
Assim, tecnicamente, na heráldica, não se faz qualquer alusão a estigmas.
No entanto, a ideia difundida pelo ensino,
até muito recentemente, de que o escudo português
carrega as cinco chagas do Cristo, vem do facto de que os besantes de campo são vistos como representações das chagas, ideia que sacraliza
o país (e o Rei). Essa ideia
está já presente
na inscrição latina da LL através do emprego reiterado do sintagma
“stemmata Christi”. Assim, aconselha a inscrição
latina, “leve cada um os estigmas
do que é seu”. À identidade Portugal=Israel já anteriormente analisada, sobrepõe-se uma outra em que o corpo de Portugal
existe simbolicamente à imagem do corpo de Cristo e o povo português torna-se o povo eleito,
ungido como o do Cristo e messiânico por excelência no concerto das nações.
Mais ainda: como cada uma das quinas (ou escudetes) leva cinco chagas
(ou besantes), temos cinco vezes cinco
chagas. É o cinco elevado
ao quadrado.
Graficamente, o cinco se
multiplica na disposição dos escudetes em cruz com um ao centro,
cada escudete levando, repetimos, cinco
besantes.
O número
cinco tira o seu simbolismo do facto de ser,
por um lado, a soma do primeiro
número par e do primeiro número ímpar ( 2+3) e, por outro lado, o meio dos nove primeiros números. É signo de união, número nupcial diziam os Pitagóricos; número do centro,
da harmonia e do equilíbrio. As cinco chagas do Cristo sacraliza o ensino clássico
e o difunde em todo o Ocidente cristão.
A harmonia
pentagonal dos Pitagóricos deixa a sua marca na arquitectura das catedrais medievais. A estrela de cinco pontas,
a flor de cinco pétalas é colocada, no simbolismo hermético, no centro da cruz dos quatro elementos: é a quinta-essência.
Os dois anjos laterais justificam-se do ponto de vista teológico: eles ladeiam uma representação metafórica do corpo de Cristo que é o corpo de Portugal. A Restauração de 1640 retoma
e confirma a disposição do escudo português
na charola de Tomar.
A recente exposição realizada no Palácio
da Ajuda, depois do
restauro das esculturas, sob o nome de “A luz que vem
do Norte”,
mostra claramente a continuidade da velha tradição portuguesa da sacralidade do escudo nacional. Já em Tomar, no século
XVI, o escudo das cinco quinas ergue-se no centro de dois anjos.
GRAVURA Nº 13, LIVRO III, APÊNDICE, P. 792 : FIGURA ALEGÓRICA.
Talvez a mais importante das gravuras
da LL, ainda não analisada
em estudos sobre o século XVII. Faz parte do apêndice do volume e introduz a Peroratio da LL. Nela a figura tradicional da Fortuna
torna-se a Fama, que exalta
o novo monarca
português. Uma figura feminina alada, vista de perfil,
empunha a trombeta
. Ela tem o pé sobre uma esfera no ápice de uma pirâmide
coberta de inscrições em duas das suas faces.
No ápice da pirâmide, está a dedicatória ao novo Rei: IOANNI
IV. Na face frontal
da pirâmide encontra-se a seguinte
inscrição:
MAG NANI MO, PIO INCLYTO,
FELICI, VICTORI,
TRIVMPHATO- RI CASTELLA
NORVM, LIBE- RATORI PATRIÆ,
SEMPER AVGVSTO. LVSITANIA SVA ÆTERNITATEM
V.
Anno
Christianæ salutis 1644
Lusitanæ Libertatis 4 FORTITVDINE
AC PRVDENTIA
Na face à direita da pirâmide,
em escorso, lê-se:
DI LE TVS DEO
ET HO- MINI- BVS, CV IVS ME- MORIA IN BENE-
DICTIONE
EST
Ao pé da gravura
uma última inscrição refere-se ao monumento erguido
(na gravura e no livro, pela imagem e pelo texto) ao novo Rei a quem o autor se dirige directamente expressando-lhe o sentimento que leva no coração:
Quæ tibi per fora,
fœlix Rex, monimenta leuamus, Cordibus in nostris non peritura leuas.
(Os louvores que te erguemos
pelas praças, ó Rei feliz, Tu os constróis imperecíveis nos nossos corações)
Essa gravura, sem marca, retoma e concentra
vários temas:
a)
o escudo
de Portugal impresso
no pano que pende da trombeta da Fama;
b)
a presença alternada
dos animais simbólicos já conhecidos e que sustentam a pirâmide
em honra a D. João IV: o Leão espanhol e o Dragão português;
c)
a evocação de um espaço urbano de tipo italiano:
no alto do palácio identificam-se uma série de personagens alegóricos (S. Miguel;
Hércules coberto com a pele do leão de Neméia e com a maça; etc.) assim como a figura da Justiça no alto da coluna.
Pelos menos dois elementos arquitectónicos, presentes na gravura,
enfatizam o elã ascensional: a pirâmide
e a coluna. As faces da pirâmide que dizem a glória do rei têm o seu correspondente simbólico na coluna do segundo
plano: esta, isolada,
e portanto
sem função de sustentação, sugere as relações entre o céu e a terra, evocando ao mesmo tempo o reconhecimento do homem para com a divindade
e a divinização de certos homens.
A coluna e a pirâmide
simbolizam o poder que assegura
a vitória e a imortalidade.
Observe-se, finalmente, como essa gravura fecha o ciclo através
de um espaço nitidamente urbano, altamente culturalizado enquanto as demais
gravuras pareciam mais ligadas
a aspectos da natureza (animais, árvores, astros, paisagem etc.).
A gravura nº 13 precede
propriamente a parte final intitulada peroratio (do verbo orare, “falar, pedir em favor de alguém”),
à moda de Cícero.
Na retórica clássica, a peroratio é a conclusão geral que reúne os pontos essenciais
da argumentação e busca ganhar a adesão
do auditório, no caso, as cortes europeias.
3.
Conclusão: a retórica da LL.
As gravuras da LL não são obra do Dr. António de Sousa de Macedo: foram encomendadas para ilustrarem a sua argumentação jurídica e muito provavelmente executadas segundo sua orientação e/ou supervisão. Elas fornecem
ao leitor uma série de imagens que resumem,
anunciam, glosam, difundem ou transfiguram em exemplos
que falam à imaginação, figuras e acontecimentos contemporâneos. Por outro lado, as ilustrações criam um eixo diacrónico em que momentos fortes
da história de Portugal articulam-se de forma coerente segundo um projeto
ao mesmo tempo divino e humano: a fundação
do reino, Ourique e a Reconquista, Aljubarrota e a necessária independência da pátria
frente à Espanha.
Sobretudo, essas gravuras ajudam a fundar no espírito do público
leitor a iconografia do novo rei e da nova casa reinante.
Para tal, as imagens lançam
mão da retórica característica da época: a Fénix
que renasce
das cinzas é a imagem do país que renasce da servidão estrangeira; a vitória
das armas portuguesas estava escrita nos astros, etc. Figuras mitológicas
como Alcides ou Luso são invocadas para justificar a oposição
Espanha vs Portugal,
que reduplica
a oposição Leão de Castela
vs Dragão português.
No entanto a própria escolha paradigmática é reveladora. Dos reis de Portugal anteriores a D. João IV são citados
apenas três: o fundador
do Reino (Afonso Henriques em 2 gravuras), D. João I (o vencedor
de Aljubarrota e o iniciador
da dinastia de Avis) e D. Manuel com sua numerosa descendência à moda do patriarca bíblico Jessé. Observe-se que não há nenhuma
imagem de D. Sebastião, nem do Africano,
por exemplo, ou de qualquer outro rei português.
Várias gravuras implicam uma evidente intertextualidade de cunho religioso: D. Manuel surge como o patriarca
Jessé, antepassado do
Messias, ou seja, do
Esperado. O próprio Cristo dirige-se ao rei fundador estabelecendo uma promessa que passa pela mulher. Esta não é, no texto latino que comenta a gravura,
a Virgem Mãe, mas D. Catarina
de Bragança, que ganha assim conotações religiosas de nova Eva. A vitória da casa de Bragança reflecte a ação divina.
Portugal repete o destino
de Israel como terra de Deus. O exemplo
mais interessante de todos,
no caso, é a ideia veiculada
pelo texto latino de que Portugal
(ao mesmo tempo Rei e Reino) leva, no seu corpo simbólico, os estigmas
de Cristo.
Por outro lado, os animais míticos,
a heráldica e a astrologia fornecem um outro fio de articulação e de leitura, unindo várias ideias: o dragão de Bragança
defendeu-se e por ser justa a sua causa, venceu o leão de Castela;
a vitória estava
escrita no céu e nas estrelas; as armas portuguesas são e serão vitoriosas. Todo o anexo final do volume, consagrado às profecias, reitera o elo entre o fado (que não pode ser revogado
porque é promessa
divina e Fatum) e o aspecto
inquestionável da independência portuguesa. O próprio
nome escolhido para o volume - Lusitania
liberata e Restauração - implica
em saída da servidão
e retorno ao estado de direito.
Assim a LL fornece a iconografia do novo rei através da sua
efígie, sua sagração, seu triunfo sobre o trono móvel (que é o cavalo) e o reconhecimento da sua grandeza
pelo monumento final com as trombetas
da fama. Os louvores ao novo Rei e à nova casa reinante
estão também inscritos de forma imperecível nos corações portugueses.
Obra de propaganda e de defesa de uma tese nacionalista, a LL desenvolve a sua argumentação retórica a partir de um determinado universo simbólico ligado ao messianismo português.
LILIAN PESTRE DE ALMEIDA
UFF Lisboa
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Principios del Reyno de portugal. Con vida y hechos de Don Affonso henriques su primero Rey. Lisboa: Off. Paulo Craesbeeck.
[1] As galerias dos Reis de Portugal colocam
um problema interessante do ponto de vista iconográfico e deveriam ser estudadas
de forma sistemática. Por outro lado, a ausência
deliberada dos Reis do período filipino
faz parte de um programa iconográfico que se caracteriza pelo seu aspecto “nacionalista”, caso evidentemente da Galeria dos Reis do Palácio de Fronteira, em Lisboa,
também dos meados do século XVII
[2] Terceiro filho do rei
João IV de Portugal
e de Dona Luísa de Gusmão, foi Senhor da Casa do Infantado. Cognominado de O Pacífico
porque em sua regência fez-se a paz com a Espanha (em 1668).
[3] Catálogo das obras impressas
no século XVII.
A Colecção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Lisboa, 1994. Apresentação do Professor Doutor José V. de Pina Martins. Introdução, organização, bibliografia, catalogação e índices por Júlio Caio Velloso.
Indicado daqui em diante por LL
[4] A expressão é um lugar comum da primeira Chanson de geste francesa do final do século XI. Não esquecer que a primeira dinastia portuguesa, dita de Borgonha, é de origem francesa
[5] Número especial dedicado
a Vieira. Lisboa, Abril/Setembro de 1997,
p. 91 e p. 146.
[6] SCHLUETER (2007: 240).
[7] Do grego antigo οὐροβóρος, ourobóros de οὐρά, oura, «cauda dos animais» et de βορός, borós (« voraz, glutão
») de βορά (« alimento
»). É empregado para significar: a) a representação de uma serpente
ou dragão que se morde a cauda;
b) fig. alguma coisa que se volta sobre si mesmo,
cujo desenvolvimento leva ao retorno
a uma situação inicial.
[8] Cf. HAUCOURT – DURIVAULT (1970: 84).
[9] A preposição cum, no caso, é adversativa
[10] RABELAIS, François. Prologue de Gargantua, in OEuvres complètes. Edition de Mireille
Huchon. Paris, Bibliothèque de la Plêiade, 1994.
[11] Sobre o assunto veja-se BUESCU (1987)
[12] SERRÂO (1994).
[13] VIEGAS, António Pais.
Principios del Reyno de portugal.
Con vida y hechos
de Don Affonso henriques su primero Rey. Lisboa,
Off. Paulo Craesbeeck, 1641, f. 2vº e 3
[14] PESSOA (1978).
[15] A derrota dos espanhóis
em Aljubarrota reaparece num painel que ladeia a galeria dos Reis de Portugal
no programa iconográfico do grande lago do Palácio de Fronteira. O tema torna-se um topos da arte portuguesa
[16] A Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista. São Paulo,
Edições Paulinas, 1980
[17] A representação de Jessé sentado
é menos corrente.
[18] Iconographie de l’art chrétien. Paris, PUF, 1955-1959, 3 tomos, 6 volumes.
[19] Temos disso um exemplo patente
no
tema popular do folclore brasileiro cantado
por Milton Nascimento: “da vara nasceu a flor e da flor o Salvador”. Evidentemente, a vara é a
árvore de Jessé;
a flor, a Virgem e o Salvador, Jesus
[20] ABREU (1997: 102-104). No mesmo período
em que se desenvolve o tema do rei-Sol
francês, Filipe IV de Espanha é apresentado como el rey planeta
[21] ELIADE (1964).
[22] O volume da LL, publicado em 1645, graças
a essa gravura
nº 10, deve ser considerado como a fonte primeira
dos catorze cavaleiros do grande lago do Palácio Fronteira, em Lisboa, do século XVII. O programa
marcadamente “nacionalista” tem duas características: elide os três Filipes espanhóis e
faz repousar a nova dinastia sobre
os cavaleiros, sugerindo
que o novo rei é, na verdade, o primeiro inter pares
[23] Cf. GÁLLEGO (1972)
[24] Oceanos, nºs 30/31, Abril/Setembro de 1997, volume dedicado
a Vieira
[25] Philippus prudens Caroli V. Imp. Filius
Lusitaniae Algarbiae, Indiae, Brasiliae legitimus rex demonstratus Livro I, p. 77
[26] Pintor flamengo (Antuérpia, c. 1607 – c. 1678)