Luís
Miguel Ferreira Henriques
(Instituto Politécnico
Portalegre)
O CapitÃo-soldado
na Historiografia Portuguesa de Quinhentos
The Captain-Soldier in the Portuguese Historiography of the 16th. Century
Abstract: The sixteenth-century Portuguese historiography provides numerous
descriptions of battles that suggest the appearance of the ideal figure of the
general-soldier, figure that dates back to Homeric epic. The arrival on the
scene of the general-soldier or the captain-soldier follows a well-established script:
fulfilling their duties as a military leader, whether before or during the
battle, the captain bursts in among the soldiers, uttering one or more
exhortations that seek to encourage the troops to fight. Then, as if he were a
soldier, snatching a shield or a spear, he is the first one to face the enemy,
an act intended to drag the dubious soldiers to combat. In these circumstances
he addresses different kinds of harangues to his soldiers, usually in the form
of epipolesis, pronounced on foot, on
horseback or on board of a small vessel, mainly because the epipolesis is a type of speech used only
by captains, and the one that best marks the heroism of the hero and the drama
of battle.
Key
Words: Portuguese
historiography; sixteenth century; captain-soldier, epipolesis.
Resumo: A historiografia portuguesa do século XVI apresenta numerosas descrições de
batalhas que favorecem a emersão do ideal do general-soldado, figura que
remonta à épica homérica. A entrada em cena do general-soldado ou do
capitão-soldado segue um guião bem estabelecido: cumprindo as suas funções de
líder militar, quer nos preliminares, quer durante a batalha, o capitão irrompe
por entre os soldados, proferindo uma ou várias exortações, procurando avivar
nas tropas a disposição para a luta. Em seguida, qual soldado, arrebatando um
escudo ou uma lança, é o primeiro a arrostar com o inimigo, ato que tem por
objeto arrastar os soldados duvidosos para o combate. De todos os tipos de
arengas, geralmente é a epipolesis
que, levada a cabo a pé, a cavalo ou a bordo de uma pequena embarcação, é
proferida nestas circunstâncias, desde logo porque é um discurso, salvo
exceções, autorizado apenas aos capitães e que melhor vinca o heroísmo do herói
e o dramatismo da batalha.
Palavras Chave: Historiografia portuguesa; século XVI; capitão-soldado; epipolesis.
Fecha de Recepción: 15 de junio de 2014.
Fecha de Aceptación: 15 de septiembre
de 2014
1. O
general-soldado na literatura antiga
Estando o general romano, Valério Corvino, com o seu
exército em campanha contra os Samnitas, quis, para serenar os seus soldados
antes da batalha, dirigir-lhes a palavra, invocando, para tal, a virtus guerreira, sua e dos militares.[1]
Declarou que para merecer a confiança do exército, os soldados deviam colocar
nele os olhos de forma a avaliarem se se tratava apenas de um bom adhortator ou se também sabia arremessar
uma lança, avançar na primeira linha e empenhar-se no mais aceso da refrega.
Enfatizou-lhes ainda que, mais importante do que atenderem às suas ordens,
deviam seguir os seus exemplos (facta mea),
lembrando que as suas anteriores glórias tinham sido alcançadas graças ao valor
da sua dextra.
Segundo Corvino, para merecer a confiança do exército, um
general deve possuir qualidades oratórias e guerreiras, sobrepondo-se estas
àquelas, pois o exemplo é o melhor estímulo militar. Com efeito, a épica e a
historiografia antigas facultam-nos o retrato de preclaros generais que não se
resignaram apenas a comandar os seus exércitos, como também, para impelir as
tropas, combateram como soldados na primeira linha, alcançando, por essa via, a
admiração coeva e futura. À memória vêm-nos, em primeiro plano, Agamémnon e
Heitor, encarnações do modelo homérico de herói, que antepunham mesmo,
sublinhe-se, à capacidade de comando, a excelência do combate.[2]
Este arquétipo homérico de general-soldado acabou por ser
assimilado e modelado pela historiografia greco-romana sequente, de tal maneira
que personagens como Ciro, o Velho, Aníbal, Júlio César ou Juliano são
reconhecidamente modelos de general-soldado da Antiguidade. À cabeça deste
catálogo, deve aparecer, contudo, a figura de Alexandre Magno, personagem que
melhor interpreta o papel de general-soldado de origem épica,[3]
modelo amplamente seguido e imitado pelos historiadores da Antiguidade ao
Renascimento, na hora de construírem o caráter dos seus heróis.
Para essa aproximação de Alexandre aos protagonistas
homéricos terá concorrido, provavelmente, o facto de o macedónio ter como livro
favorito e de cabeceira a Ilíada.
Essa personalidade épica de Alexandre é-nos transmitida pelas obras de Arriano
e de Quinto Cúrcio, que destacam a sua sede de glória, desempenhando
cumulativamente as funções de general e soldado. De facto, tinha a capacidade
de suspender a atenção dos seus homens tanto pela palavra proferida, como pela
ação e partilha de perigos juntos dos soldados, uma vez que jamais lhes
exigiria um esforço que não estivesse também disposto a fazer.[4]
Cúrcio (3.11.4-7) afirma diretamente que Alexandre assumiu o papel de
general-soldado durante a batalha de Iso (Alexander
non ducis magis quam militis munia exequebatur, opimum caeso rege expectens…),
desejoso de alcançar a glória, dando a morte a Dario, tal como Aquiles abateu
Heitor.[5]
Para a construção do caráter (ethos) do modelo de general-soldado, o historiador antigo tinha à
sua disposição uma paleta de recursos, como a enunciação direta de comentários
sobre a personalidade do herói ou, por via indireta, através de uma qualquer
personagem, se bem que as formas mais habituais e impressivas fossem a
pronunciação de discursos e a realização de atos valorosos.[6] Ao proferir uma arenga
militar historiográfica, por exemplo, um general imprime nela toda a sua
audácia e conhecimentos da ars militaris
que tornam possível ao leitor avaliar o seu calibre enquanto estratega militar.
De todos os tipos de arengas militares, há um que contribui em larga escala
para a construção heroica do ethos do
general-soldado, já que as suas origens remontam à épica homérica e relevam a
exemplaridade do protagonista: a epipolesis.
Tomam-se como referência as epipolesis
proferidas por Agamémnon (4. 231-433 e 5.528-536) às tropas argivas. Nesta
última, depois de ter arengado enquanto percorria as fileiras do exército, o
Atrida arremessou uma lança que atingiu mortalmente Deïcoonte, encerrando assim
os seus deveres como comandante e como guerreiro. Foi pois com os olhos na
épica homérica que a historiografia se inspirou na hora de caracterizar os seus
heróis, daí que a epipolesis seja
geralmente um discurso exclusivo do general, peça decisiva na construção do
puzzle do seu ethos exemplar.[7]
Pelo exposto, se depreende que a historiografia antiga
não se limitou a perpetuar secamente os feitos do passado, mas ambicionou ser
também uma composição literária e erudita capaz de influenciar e comover os
seus leitores.[8]
Vários têm sido os estudiosos[9]
que recentemente têm estudado as relações que desde cedo se estabeleceram entre
a historiografia e a retórica antigas. A guerra, temática central da
historiografia antiga e motor da mesma, assumiu-se como o terreno ideal para a
emersão de heróis que reuniam uma série de valores largamente aceites e
admirados pela comunidade leitora. Cientes desse aspeto, os historiadores
avançaram por esse caminho, de maneira que da historiografia helenística à
imperial, se acentua a introdução de descrições de batalhas e de outros
episódios patéticos cada vez mais impressivos e quase inverosímeis,
intercalados na narrativa dos feitos. O peso da retórica é tal que a descrição
(ekphrasis) dessas batalhas se torna
minuciosa, onde a eficácia (enargeia)
das mesmas joga um papel determinante de maneira a que os leitores experienciem
quase as emoções dos protagonistas. É neste contexto retórico-moralizante muito
próprio que essas descrições bélicas abrem alas a recursos que potenciem a sua
eficácia, como a atuação valorosa de um general-soldado ou a pronunciação de
uma epipolesis seguida de um
arremesso de lança contra o inimigo. De facto, esta atuação de conotações
épicas desperta a atenção do leitor, tornando-o o refém da conclusão da ação do
general-soldado.
Sobre a figura do general-soldado na Antiguidade têm sido
apresentados aprofundados estudos, nomeadamente os de J. Keegan (1987) e
(1993). No prelo, encontra-se um completo estudo de Carmona Centeno (2014) sobre
os contornos do general-soldado na literatura greco-romana, cuja atuação surge
variadíssimas vezes associada à cena típica da epipolesis. Todos serviram de base para a apresentação do estado
atual da questão relativamente à literatura antiga.
Nas páginas seguintes, abordamos a receção do modelo do
general-soldado da Antiguidade da historiografia portuguesa de Quinhentos. Numa
época de euforia imperial, os historiadores foram sensíveis à tradição prévia
e, num processo de aemulatio próprio
da época, procuraram que os seus protagonistas em nada ficassem atrás dos
antigos, cujas façanhas são a manifestação da virtus portuguesa. A galeria de heróis é extensa, porém aqui
trazemos apenas alguns guerreiros que, pela mão dos historiadores,
desempenharam plenamente o ideal do general-soldado ou do capitão-soldado, já
que capitão era o termo mais comum na época.
2. O
capitão-soldado na literatura portuguesa de Quinhentos
2.1. Lourenço de Almeida
O apelido deixa transparecer a filiação: era filho de
Francisco de Almeida, o primeiro vice-rei da Índia. Acompanhou seu pai ao
Oriente, onde desempenhou o cargo de capitão-mor, tendo alcançado várias
vitórias, reveladoras de um espírito audaz e competente. Barros, Castanheda e
Gaspar Correia narraram com emoção as dramáticas batalhas em que entrou, nunca
virando as costas à luta, nem, mesmo já exangue e à hora da morte, abandonou os
seus, exortando-os sempre à luta até ao último suspiro. Lourenço de Almeida
desempenha cabalmente o ideal do capitão-soldado.
A sua primeira façanha ocorreu em 1506, quando derrotou a
armada do rei de Calecut. No dia 15 de março, apareceu no horizonte a frota dos
inimigos, cuja imensidão dos mastros das embarcações, diz o
narrador/Castanheda, parecia uma mata que até fazia sombra:
(…) andando dõ Lourenço ao longo da costa começou
daparecer a frota dos imigos que andava em sua busca, e era de duzentas e
oytenta velas e oytenta e quatro naos grossas, e cento e vinte quatro paraós
grandes ẽ que avia mouros e Naires de peleja sẽ conto,
que os mais erão frecheyros, e algũs espĩgardeyros, e outros de lãças, espadas e escudos, e todos
armados de laudeis de seda, e celadas, e galhardos de coyros de bufaros laurado
tudo de seda de cores, e muytos trazião manilhas douro e pedraria, e todas
estas velas muyto bem artilhadas de muyto boa artelharia, e como erão tantas
como digo. E hião juntas a multidão dos mastos parecia hũa mata muy
espessa, e assi fazia sombra.
Imediatamente, chamou à sua presença os capitães e
proferiu-lhes uma arenga, exortando-os a acompanhá-lo naquela empresa, porque,
com a ajuda de Deus, a vitória era certa
(porisso que ho acõpanhassẽ muyto ledos pera
pelejar com aqueles cães de que tivessem por muy certa a vitoria, porque nosso
señor tinha muyto cuydado dos Christãos, nem avia nũca de sofrer que a
sua santa fê fosse abatida.).[10]
Cumpriu assim o seu papel de capitão. Para mais incendiar as tropas, não faltou
o capelão, que, subindo ao chapitéu da nau e arvorando um crucifixo, levou as
tropas à comoção com as suas palavras.
No dia seguinte, postas as coisas em ordem e antes de se
iniciar a contenda, como capitão, lançou um último apelo para a valentia «Ora sus hirmãos agora he tempo que cada hũ mostre seu esforço
e valentia». E começou a refrega, na qual
Lourenço de Almeida, despojado das insígnias de capitão, tomou a alabarda de
soldado e foi dos primeiros a abalroar as embarcações inimigas. O seu heroísmo
era tal, que os soldados se deixaram contagiar por aquela virtude guerreira,
praticando também atos briosos:
(…) porẽ dom Lourenço que os não tinha em conta com a esperãça em
nosso señor que lhe daria vitoria foy abalrroar a mayor das capitainas que
trazia seiscentos homẽs de peleja […] e dõ Lourenço pelejava com hũa alabarda
pequena com que fazia assaz de dano nos immigos, ferindo hũs e matãdo
outros sem lhe valer a multidão de frechas que tiravão e outras armas
offensivas de que se aproveitão, porque
tambem os nossos vendo a valentia do seu capitão mor, por se parecerem coele
fazia cousas muy assinadas: e de tal maneyra pelejarão que quãtos immigos
estavão na não foram mortos.[11]
Aqui temos a certidão de que Lourenço de Almeida é
apresentado segundo o ideal de capitão-soldado. Porém, é a dramática descrição
da sua morte em combate que atira com Lourenço de Almeida para os píncaros
desse estatuto.
Em março 1508, ao largo de Chaul, a força portuguesa
composta por oito navios enfrentou a frota rume chefiada por Mirocem a que se
juntara a armada do rei de Cambaia, comandada por Meliquiaz, governador de Diu.
Ao todo, as duas armadas, segundo Castanheda, perfaziam XIV velas em que entravão quarenta fustas e gales e hũ galeão, e quatro
naos. Não queremos aqui apresentar o
relato completo dessa batalha, para isso existe bibliografia suficiente,[12]
mas tão-só concentrar-nos na descrição dos momentos heróicos que antecederam a
morte do capitão, Lourenço de Almeida. Durante os combates, a nau do
capitão-mor começou a meter água, ficando impossibilitada de realizar qualquer
movimento. Então, como não havia remédio de salvação para a tripulação,
disseram a D. Lourenço que abandonasse a nau num parau com alguns remadores,
pois ela era o capitão e a honra dos portugueses. Ora, D. Lourenço respondeu
que jamais aceitaria salvar-se, deixando os seus em perigo:
E tendo ho contra mestre ho parao prestes disserão os
fidalgos a dõ Lourenço que pois a nao tinha tinha tão pouco remedio pera se
salvar, quão pouco eles merecião a deos por seus pecados, que se salvasse ele pois
ẽ sua salvação estava a honrra ou desonra dos Portugueses,
porque ele era ho preço de todos; e que eles pois deos assi era servido
ficarião pelejando ate que morressem. O que ouvindo dom Lourẽço lhes
disse que bem sabia ho amor que sempre lhe teverão; e porque ele lhe tinha o
mesmo que nunca deos quisesse que se ele salvasse ficando eles em perigo; que não desesperassẽ da
misericórdia de deos que era grande, e que os capitães da frota ho socorrerião.
Alguns fidalgos insistiram na ideia ao que ele retorquiu,
dizendo que ninguém mais falasse no assunto, senão atirar-lhe-ia com a alabarda
com que lutava:
E porque os fidalgos quiserão repricar, disse que lhe não falasse ninguém em salvarse, se
não que tiraria com hũa alabarda que tinha na mão com que pelejava. E logo ordenou sua gẽte pera se
defender em quanto podessse, porem não tinha mais sãos que trinta homẽs…[13]
É sem dúvida um exemplo de capitão e de soldado. E foi
assim que, não virando as costas à peleja, acabou por morrer em combate.
Castanheda é sucinto na descrição da morte do herói: sem uma coxa que lhe fora
levada por uma bombarda, pediu que o sentassem junto ao mastro, onde continuou
a esforçar os seus. E nisto, uma segunda bombarda atingiu-o no peito e assim
expirou.
João de Barros pegou nestes dados, amplificou-os, descrevendo
pormenorizadamente os últimos momentos do herói. A sua morte assemelha-se à de
um mártir, levando o leitor a comover-se diante desta ekphrasis:
E mandou que o encostassem ao propao junto do masto do
meyo assentado em hũa cadeira quasy em giolhos: e vendose naquelle estado
levantou as mãos a deos dizendo, senhor pois te aprouve tirar o poder pera
ajudar a estes cavaleiros que derramam seu sangue por confissam da tua fé,
peçote que aqui atado nesta columna que eu tomo por glória com a lembrança da
tua, ajas por bem que os ajude com a fala pois nam posso com a pesoa, porque
ella seja testemunha que te confesso com alma pois o corpo desfaleceo. Acabado
estas palavras e convertandose á gente que pelejava querẽdo os
ajudar cõ outras nã da fraqueza da morte que lhe vazava o sangue mas que lhe
ditava o animo de cavaleiro e espírito de catholico baram, nã perdendo o officio de capitam nem o conhecimẽto pera
dar a seu deos: veo outra bombarda que lhe levou todalas costas da parte direita
descobrindolhe os bofes.[14]
O leitor chega ao ponto de sentir a dor da personagem, de
maneira que capitão e soldado foi Lourenço de Almeida até expirar.
A morte do filho varão provocou um enorme sofrimento em
Francisco de Almeida, cuja sede de vingança só será saciada na batalha naval de
Diu, em 1509, desobedecendo às ordens de D. Manuel que lhe determinava o fim do
mandato. Conta Gaspar Correia que essa resolução de vingança a tomou logo o
vice-rei no momento em que lhe trouxeram a notícia da morte do filho. Na
circunstância, terá proferido esta resoluta frase: «quem o frangão comeo, ha de comer o galo, ou pagalo».[15]
António da Silveira figura na galeria dos heróis
nacionais devido ao heroísmo manifestado não só como capitão mas também como
soldado durante o primeiro cerco que os turcos puseram à fortaleza de Diu, no
ano de 1538. No opúsculo Diensis…de
1544, Damião de Góis afirma que a armada que procedia do Cairo, comandada por
Solimão Baxá, era constituída por 63 galés, nas quais vinham 20.000 soldados e
4.000 rumes, tendo arribado a Diu nos inícios de Setembro. Aí se encontrava
Coje Sofar, capitão cambaico, com outros 20.000 homens. António da Silveira
dispunha apenas de 700 soldados portugueses.
Vários são os autores que se ocupam da narração das
façanhas obradas pelos soldados portugueses, sabiamente comandados por
Silveira. Diogo do Couto, na Década VI, faculta-nos o retrato de um capitão
atento a tudo, detentor de uma fina astúcia, implacável na aplicação da
justiça, mas igualmente afetuoso com os seus homens. A sua atuação foi
determinante para a libertação da cidadela. Couto evidencia essencialmente a
vertente do capitão vigilante que percorria todas as estâncias, para se
aperceber do que era necessário para mandar prover. Por diversas vezes, o
narrador/Couto refere que ele se deslocava para ver com o seu olho os trabalhos
(Antonio da Silveira, como capitão
animoso, corria a todas as partes, para
ver com o olho o de que tinham necessidade pera logo mandar prover).[16]
A sua presença era sempre motivo para as tropas redobrarem o esforço (porque como verem o capitão se apressava
pera os vir socorrer, se lhes dobrava o animo e as forças, pelejando como
leões, fazendo tal estrago nos mouros, que os fizeram retirar).[17]
Também desempenhava as funções de soldado, combatendo ao lado da soldadesca (Antonio da Silveira com toda a soldadesca
trabalharam aquela noite lançando-se em meio das chamas, em que muitos se
queimaram por muitas partes).[18]
Ainda que desejasse pelejar mais vezes, a fim de partilhar do perigo por que os
soldados passavam, não lho permitiam os restantes fidalgos que o acompanhavam,
dizendo que aquela não era a sua obrigação, sendo sim, a garantia de salvação
da fortaleza. No excerto a seguir transcrito, a admiração pelo capitão é tanta
que, para o preservarem de qualquer desastre, os que o acompanham declaram que
lutariam, nem que necessário fosse, com as entranhas numa mão e a espada na
outra, versão alternativa do ideal renascentista, numa mão a espada e na outra
a pena:
Antonio
da Silveira chegou áquella parte acompanhado de alguns Fidalgos, que o seguiam
(que elle chamava pera se aconselhar nas cousas arduas) e foi passando por todos pera se por no lugar da defensão, porque lhe
não sofria o animo ver os seus em perigo e elle ficar der fora, mas os que
hiam com elle o detiveram, dizendo-lhe que não era aquella sua obrigação, e que
lhe não haviam de consentir arriscar-se a perigo algum, porque nele estava o
remedio da fortaleza; e em quanto o vissem vivo, pelejariam todos com as tripas em huma mão e com a espada na outra;
o que seria ao contrario, se lhe acontecesse desastre.[19]
Aqui temos pois o capitão que deseja ser soldado, mas,
porque amado pelos seus, o reenviam à sua condição de capitão.
Porém, durante
este cerco, outros capitães emergem pela sua valentia. Se até agora a
caracterização de Silveira enquanto capitão-soldado é feita através das suas
ações, no caso do capitão do baluarte do fogo, Rodrigo Proença, o retrato de
capitão-soldado é feito diretamente pelo narrador. É a prova de que a figura do
capitão-soldado era um verdadeiro tópico literário e que Couto tinha bem
presente, quando caracteriza as suas personagens pelas quais nutria maior
apreço. O excerto seguinte é revelador dessa adesão à personagem. Rodrigo
Proença é soldado enquanto peleja e é capitão quando tudo ordena e comanda, à
maneira épica:
Rodrigo Proença, Capitão do baluarte do fogo, deo neste
dia mostras de hum valoroso Cavalleiro, e
prudente Capitão; porque quando era necessário, pelejava como soldado com grande valor; e quando cumpria, mandava e governava como astuto capitão,
acudindo de tal maneira ás necessidades, que em gritando hum por polvora, e
panella, já as alli achava, por lanças de fogo, ás mãos as tinham, em fim, tudo
estava tão bem negociado, que nada faltava a seu tempo.[20]
A alusão a este ideal de capitão-soldado reaparece
adiante, agora para descrever a morte dramática deste herói, ocorrida no
momento em que repousava um pouco do combate:
Rodrigo de Proença, que neste dia fez cousas bem dignas
de se celebrarem, vendo o aperto em que estava, se pos diante de todos, fazendo bem o officio de soldado, porque o
estado em que via aquelle negocio o fez esquecer da obrigação de capitão,
porque entendeo que alli convinha mais pelejar que mandar; mas a fortuna
invejosa de seu serviço, ordenou, que em alevantando a vizeira de hum elmo, que
tinha pera resfolegar hum pouco, endireitousse uma frecha por alli dentro, que
o tomou per hum olho e outra pela boca de que cahio mortal.[21]
Começámos com António da Silveira e com Damião de Góis e
a eles voltamos para encerrar a caracterização daquele capitão. De facto, é
Góis quem melhor retrata Silveira enquanto capitão-soldado, assumindo-se como
fonte histórica do próprio Diogo do Couto. De facto, no opúsculo de Góis,
encontramos já a característica deambulatória de Silveira, que a tudo corria e
tudo provia (huc, illuc). Foi assim
que acorreu, como capitão, ao local onde as tropas portuguesas começavam a
vacilar diante do ataque dos inimigos. Assim que chega, recorre a dois
vocativos (Mei Christiani, Lusitanique
milites), alusão muito clara ao facto de os portugueses serem a milícia de
Cristo, estando, por isso, destinados a combaterem os infiéis e a darem a sua
vida, como os mártires, pela causa. Repare-se que Silveira não exorta os
soldados a sacrificarem os seus respetivos corpos, excluindo-se ele mesmo de
tal penitência. Não é isso que sucede, pois o herói chama os soldados a
acompanhá-lo nesse sacrifício (mecumque
corpora), ou seja, dispõe-se a lutar como soldado e não a ordenar como
capitão. Ora, esta é, do ponto de vista verbal, a clara certidão de que
Silveira desempenha o papel de capitão-soldado e de que a construção da
personagem pelo narrador/Góis está orientada para esse fim.
Mas, as ações sequentes praticadas pelo herói, colocam-no
nos escaparates dos capitães-soldados. Num dos símiles mais ricos da literatura
portuguesa e que remete para cenas idênticas da historiografia e épicas
antigas, Silveira, brandindo a espada, arroja-se, como um leão ensanguentado,
contra os inimigos, arrancando os seus, quais ovelhas, das fauces dos lobos
inimigos. Atente-se na força sobre-humana do capitão, um leão, em contraste com
a fragilidade dos companheiros que são ovelhas. Por outro lado, o narrador/Góis
procurou transmitir o movimento dessa acção, recorrendo à expressão huc illucque, que já anteriormente,
antes da alocução, havia sido empregada. Esta é uma marca do herói, que a tudo
acorria com energia, percorrendo incessantemente todos os baluartes da
fortaleza, a fim de prover e ajudar os mais aflitos. Góis é uma fonte atestada
de Diogo do Couto, de maneira que no relato que este faz na Década VI, repete insistentemente a
mobilidade do herói. Para completar o quadro heróico, os inimigos são
arremessados para o local donde vieram como uma bola, comparação que encerra
valorosamente a figura de António da Silveira como insigne capitão-soldado:
Dux Antonius a Silveira, qui omnibus arcis angulis
praesto erat, huc, illuc, viginti tantum militibus circunstipatus, audit hostes
non solum arcem agressos, verum etiam muros atque turris repagula superasse. Eo
dum omni celeritate festinat, suos atque hostes promiscue non super moenia, sed
in ipsa arcis area dimicantes, vel potius tumultuantes, aut fluctuantes
invenit. Quo viso, elatus animi magnitudine uoce sublimi inquit: «Mei Christiani, Lusitanique milites,
mementote fidei, patriae, parentum, mecumque corpora instar martirum constanter
pergite sacrificare». His dictis,
veluti leo ore cruore pleno, vibrato ense, in medium catervae se protrudit, huc
illucque iter aperiens, suosque veluti oves ex faucibus luporum eripiens,
hostes, tanquam pilam, eo, unde venerant, brevi temporis spatio reiecit.[22]
O capitão António da Silveira, que estava presente em
todos os cantos da fortaleza, para aqui e para ali, tendo por companhia apenas
20 soldados, ouve que os inimigos não só tinham atacado a fortaleza como também
tinham ultrapassado as barreiras do baluarte. Até que se apressa com toda a
velocidade, [e] encontra os seus e os inimigos misturados, não sobre as
muralhas, mas dentro da própria área da fortaleza lutando, ou melhor, fazendo
tumulto, ou vacilando. E visto isto, exaltado pela grandeza do seu ânimo, com
voz sublime, diz: «Cristãos meus e soldados Portugueses, lembrai-vos da fé da pátria,
dos pais, e continuai vigorosamente a sacrificar comigo com firmeza os corpos à
imagem dos mártires.» Com estas
palavras, como um leão com a boca cheia de sangue, tendo brandido a espada,
lançou-se para o meio da multidão, abrindo caminho para aqui e para ali,
arrancando os seus como ovelhas das fauces dos lobos, atira os inimigos como
uma bola para o lugar de onde tinham vindo, num breve espaço de tempo.
Mas a fortaleza de Diu é um alfobre rico em heróis.
3.2. D. João de Mascarenhas
D. João de Mascarenhas é o modelo do capitão-soldado
português, sendo, também por essa via, o herói que melhor encarna a virtus portuguesa. De acordo com a
historiografia coeva, muitos são os heróis, mas este é o herói, o protagonista
mais admirado e que detém a adesão generalizada dos autores, verdadeiro símbolo
nacional. Inclusivamente, é o orador militar mais copioso da historiografia de
Quinhentos. É certo que para esta cifra muito contribui o sucesso editorial que
o segundo cerco de Diu alcançou, matéria tratada por vários autores, alguns
deles testemunhas ativas dessa façanha, como Leonardo Nunes.
Foi assim que no dia 18 de abril de 1546, as forças do
rei de Cambaia chefiadas por Coge Sofar, acompanhado pelo filho Rumecão,
chegaram jubilosamente a Diu. Vinham nessa força, segundo Teive, rumes,
cristãos renegados, abexins, fartaques e árabes. Mais de 30.000 tarefeiros a
que se somavam 5.000 turcos, 400 dos quais eram atiradores, fechavam o cerco à
cidadela. Por seu turno, no início dos confrontos, Mascarenhas tinha apenas 200
homens à sua guarda. Apercebendo-se das manobras preparatórias, o capitão
tratou de previamente prover a fortaleza de tudo quanto era necessário para
resistir àquele aperto.
Logo no início do
opúsculo, o narrador/Teive faculta-nos o retrato do valoroso capitão, detentor,
segundo os tratadistas, das qualidades exigíveis para o cargo, como a prudência
e a experiência:
Arci tum praeerat Ioannes Mascarena, vir genere,
factisque clarus, magno rei militaris usu; aderat et in periculis obeundis
animi magnitudo, et in praecauendis insidiis prouidentia, et in militum animis
tractandis prudentia, ut nullam bene gerendae rei spem ex temeritate, aut
segnitie ducis hostes sibi promitterent.[23]
Encontrava-se, então, à frente da fortaleza João de
Mascarenhas, um guerreiro insigne, na estirpe e nos feitos, com larga
experiência de combate; possuía grandeza de ânimo a enfrentar o perigo, lucidez
a precaver-se de ciladas e prudência a lidar com o ânimo dos soldados, de modo
que os inimigos não podiam assegurar-se qualquer esperança de êxito por força
da imprudência ou da passividade do capitão.
Ora, o edifício histórico de Teive assenta em dois
pilares humanos, Mascarenhas e D. João de Castro, proferindo, respetivamente,
cada um deles, uma extensa arenga, no início e no fim do Commentarius. Assim antes do início das hostilidades, o capitão
proferiu diante das tropas (T2) uma elaborada arenga em estilo indireto, na
qual apela insistentemente para a valentia do auditório, particularmente na
linha exortativa da alocução:
Nolite per deum immortalem quae maiores nostri virtute,
animique magnitudine obtinuerunt, ignavia torporeque de manibus amittere;
vestramque vitam, vel falsa spe salutis, vel turpi mortis formidine, in praesentem
perniciem praecipitare.
Não queirais deixar escapar de entre as mãos, por
cobardia ou indolência, o que os vossos antepassados alcançaram pela sua
coragem e grandeza de ânimo, e, seja por falsa esperança de salvação, seja por
infame temor da morte; não queirais precipitar a vossa vida na perdição que
tendes diante».
Findo o discurso, Mascarenhas suspende, por instantes, o
papel de capitão, sendo o primeiro a avançar para o combate. Com essa atitude,
Mascarenhas demonstra que também é soldado, exercendo alternadamente os dois
cargos, consoante as circunstâncias e a ocasião o exigirem:
(…) primus pericula obit, militis et imperatoris, uti res tempusque postulabant, officio
fungitur.[24]
(…) ele mesmo é o primeiro a avançar para o combate, o
primeiro a enfrentar o perigo; assim desempenha a função de soldado e de comandante, conforme as circunstâncias e a
ocasião reclamavam.
O que há nestas palavras de surpreendente é que a
caracterização de Mascarenhas enquanto capitão-soldado é não só construída pelo
leitor a partir das suas palavras e dos seus atos, mas sobretudo porque, diretamente,
o narrador declara que ele milititis et
imperatoris officio fungitur.
De facto, ao longo da narrativa, sempre Mascarenhas
desempenhará um destes ofícios sem descurar o outro, tal como, uma vez mais, o
narrador volta a vincar:
Mascarenna cum expedita manu quocumque clamor vocabat,
subsidia submittit; ubi maius aliquod discrimen imminebat, ipse obviam ibat;
nec ullum boni militis aut ducis eo
die munus praetermisit.[25]
Mascarenhas com prontidão aonde quer que um apelo se
fizesse ouvir, envia reforços; onde se tornasse mais iminente algum perigo, aí
acorria ele próprio, a fazer-lhe frente; e não descurou nesse dia qualquer
dever de um bom soldado ou de um comandante.
Jerónimo Corte Real confere a Mascarenhas a glória épica
que lhe era exigida e alcançada na defesa desse assédio. Aí temos o
capitão-soldado em toda a sua plenitude: perante o desmaio das tropas diante
dos mouros, acorre o capitão e, a fim de lhes restaurar o ânimo, profere
palavras duras, dizendo-lhes que eram ousados nas palavras, mas temerosos na
ação. Exortou-os a pelejar e, ele mesmo, como soldado, é o primeiro a subir os
muros e a pelejar com os mouros.
Vendo que os Mouros matam algũs homẽs,
Com setas, e arcabuzes; vendo certo,
E evidente o perigo, nam ousavam
Subir; mas recolher se determinam.
O capitam sentindo este desmayo,
Com todos os fidalgos arremete
Dizendo a grandes
vozes. «Ah soldados
Ousados
nas palavras, mas agora
Temerosos
no campo, eis aqui tendes
Nas mãos o
que pedis, que fraqueza
He esta que mostrais? Ea subamos,
Restauray
pellejando tal deshonra».
Dizendo isto, subio logo as paredes,
A pesar dos imigos, que com toda
Sorte de pelejar lho deffendiam.[26]
Deixamos para o fim, uma imagem épica do capitão-soldado,
também num poema épico. Durante um combate, o poeta recorre a uma imagem
literária e mostra-nos o capitão com as armas já rotas de tanta lide praticada
e com a espada tinta de sangue. Nessa aparência de exaustão, o capitão ainda
tem ânimo para incitar os seus a terminarem, com êxito, o prélio. Após este
apelo, redobraram o empenho e combatem com denodo:
E os lisos capacetes, os escudos
Retinem com muy grandes, duros golpes.
Ali anda o Capitam sempre diante,
Onde o perigo estava mais notorio:
Trazendo
as armas ja rotas, e a espada
Toda
banhada em sangue, aos seus incita,
Dizendo: «Ea valentes Portugueses,
A vencer costumados, dia he este
Para ficar de vos eterna fama,
E para que mostreis o grande esforço:
O preço, e o valor que em tudo tendes.
Com Mouros pelejamos, pouco valem,
Que em fim procuram vida, e honra engeitão».
Dizendo estas palavras, todos juntos
Redobram mais os golpes, e arremetem
Com dobrado furor.[27]
Tanto a lutar, como a exortar, D. João de Mascarenhas é,
de facto, o general-soldado da historiografia portuguesa, símbolo da virtus lusitana.
2.4.
D. João de Castro
Como adiantáramos, o outro herói de 1546 é o governador e
posterior vice-rei D. João de Castro. Embora a imagem austera de um governador
o autorizasse a ser capitão, não era, talvez, conjeturável ver este nobre de alta
estirpe lutando, no meio da turba, de espada na mão. Ainda antes de se iniciar
o cerco, já o capitão Mascarenhas enviara cartas aos capitães de outras praças
e ao governador, solicitando-lhes o envio urgente de reforços. A verdade,
porém, é que o governador só em inícios de novembro alcançou com a sua frota a
fortaleza, depois de ter vencido várias dificuldades, entre elas, as de
navegação. Chegando a nove desse mês, segundo Teive, ainda foi a tempo de
providenciar tudo para a grande batalha final do dia seguinte. Nesse mesmo dia,
terá proferido diante da guarnição da fortaleza, agora de 3.000 homens, uma
extensa arenga, cujos historiadores recriam nas suas obras históricas. No dia
da batalha, D. João de Castro desempenhou o papel de capitão e de soldado,
conforme as solicitações e os exemplos que a seguir apresentamos.
Aí temos o herói, durante um momento da batalha final, a
desempenhar o papel de capitão, injuriando e exortando os seus homens:
Nihilo tamen segnius pro ponte pugnatur nostris successu,
Indis loco superiore fretis. Ibi cum aliquamdiu certamen haesisset, praetor suos nunc increpare, nunc hortari,
ut antequam tota hostium vis eo se conferret, praesidia occuparent; ponte semel
capto, nihil fiduciae hosti superesse, nisi in acie ubi haud dubie Lusitanus
superior esset. His vocibus miles admonitus, renovato impetu, e turribus hostem
deiicit, non incruenta tamen pugna. Quadraginta enim ex Lusitanis ceciderunt.[28]
Nem por isso no entanto é menos determinada a luta pela
ponte da parte dos nossos com êxito, da dos Indianos com confiança na sua
posição mais elevada. Aí, no momento em que o combate se mostrou, durante algum
tempo indeciso, o Governador começou, ora a injuriar os seus homens, ora a
exortá-los a que se apoderassem da guarnição antes que os inimigos caíssem ali
sobre eles com todas as suas forças; que tão depressa fosse conquistada a
ponte, nada mais restava ao inimigo em que pudesse depositar confiança, a não
ser no combate em campo aberto, onde, sem dúvida, os Portugueses tinham
vantagem.
Apesar das exortações e orientações terem feito recuar os
inimigos, isso não impediu a morte de algumas dezenas de soldados.
Jerónimo Corte Real reelaborou epicamente estes
acontecimentos e apresenta-nos D. João de Castro a desempenhar o papel de
capitão, mas também, vincadamente, o de soldado. De facto, várias são as
alocuções proferidas em combate. Assim, o poeta, num patetismo assinalável,
descreve as consequências da guerra, com os corpos em pedaços e o sangue
empapando a terra. Repare-se que o sangue não é encarnado, mas sim negro,
porque é sangue de morte. O vice-rei, que ali anda entre os seus, exorta-os com
o topos do honestum et dignum. Feito este interregno como capitão, retoma o
ofício de soldado, dando golpes mortais. No entretanto, duas setas disparadas
pelos inimigos atravessam o seu escudo, que foi motivo de graça para o
soldado-capitão:
O como em tal sazão, por todas partes
Se mostrava a peleja brava e fera,
Quantos
corpos ali jazem sem vida
Feitos de
mil pedaços; quantos lagos
De negro
sangue estam por todo o campo.
O Visorrey com vozes altas brada,
Esforçando os soldados, diz: «ô fortes
Illustres Portugueses, tomay todos
Com vivo coraçam a fama e nome
Que vos concede Deos nesta batalha».
Dizendo isto mostrava hum grande esforço,
Dando golpes mortaes a todas partes.
Juntas vem dos immigos rechinando
Duas ligeiras setas, que atravessam
A branca forte adarga que trazia
Este bom capitão por seu amparo,
Juntas ali pregadas, lhe dão graça.[29]
Atente-se neste episódio, o facto de D. João empunhar um
escudo, elemento essencialmente caracterizador do soldado, papel que o
governador também desempenha. Ora, esse dado remete-nos diretamente para a
Antiguidade e vem-nos à memória a imagem de César que, em cenas típicas, não
deixava de arrebatar um escudo e de se lançar na luta.
Para encerrarmos a breve caracterização deste herói,
reservámos para o fim o traço mais caraterístico do capitão-soldado: a epipolesis. No início deste artigo,
tivemos ocasião de verificar que na literatura antiga, a epipolesis era um poderoso recurso retórico para a construção da
figura do general-soldado. Cremos que Diogo de Teive tinha consciência desse
facto, de tal maneira que, justamente, a última alocução do vice-rei é uma epipolesis, proferida no auge dos
combates do assalto final. Nesses instantes, quase esmagados pelo fogo inimigo,
pouco faltou para que os portugueses desistissem de atacar o baluarte. Mas eis
que de batalhão em batalhão se fez ouvir o brado do governador, dizendo que se
abandonassem a luta, por instantes que fossem, entenderia isso como uma traição
(Sed ubi per cohortes conclamatum est,
praetorem eum fortissima iuuentute ingressum esse, eum si paululum certamen
remisissent prodi).[30]
Estamos pois diante de uma epipolesis,
proferida no meio de um combate. Trata-se de um dado crucial, pois a
identificação da epipolesis com a
figura do general-soldado atinge o seu ponto mais elevado quando aquela é
levada a cabo durante uma batalha. Na verdade, uma epipolesis proferida no meio da refrega está intimamente conectada
com a ação heroica do respetivo protagonista, estratégia retórica que, no caso,
visa sublimar a atuação de D. João de Castro. Com efeito, poderá haver algo de
mais heroico do que um capitão, de espada em riste ou de escudo na mão, abrir
caminho por entre os inimigos, ao mesmo tempo que apela aos seus para a luta?
De notar ainda que a ação heroica do governador é também
valorizada pela seleção semântica do narrador, afirmando que o herói bradava
com a mais valente juventude (fortissima
iuuentute),[31] reafirmando a sua energia e audácia. Ouvidos os incentivos,
trataram todos de se animar mutuamente (sese
mutuo cohortati), arrojando-se violentamente contra os inimigos.
Quer pela ação, quer pelos discursos que profere, a
construção da personagem D. João de Castro por Diogo de Teive obedece
claramente ao modelo do general-soldado, pois, por variadíssimas vezes, vemos o
herói a cumprir as funções tanto de chefe militar, como de soldado raso.
Repare-se como, sintomaticamente, o último contacto do leitor com D. João de Castro
é feito com o governador a cumprir uma tarefa de soldado, naquilo que podemos
chamar de recriação de uma cena típica. Desopressos do cerco, encontravam-se
esboroadas as muralhas, de maneira que era imperioso proceder à reconstrução da
fortaleza. Ora, o narrador/Teive declara-nos que D. João de Castro foi o
primeiro a lançar-se nessa empreitada, exemplo que teve a arte de arrastar o
resto do exército para essa nobre e árdua missão (primus ipse operi manum admouit, cuius exemplum reliquus secutus exercitus).
Depois desta retumbante vitória, D. João regressou a Goa,
onde foi recebido ao modo romano, num cortejo que ficou famoso pela sua
sumptuosidade.
Ainda que seja visível em Teive, não deixa de o ser
também nos restantes autores, o facto de a construção do retrato de D. João de
Castro concorrer para fazer dele um simulacro dos grandes protagonistas da
Antiguidade, de Alexandre ou de César.
2.5. As epipoleseis de Cristóvão
da Gama e de Tristão da Veiga
Como temos vindo a demonstrar, a importância da epipolesis é por demais evidente na
construção da figura do capitão-soldado. De seguida, analisamos o relevo que
este tipo discursivo assume na caracterização de dois outros protagonistas.
Desde finais do século XV, que os portugueses contactavam
com o Preste João, rei cristão na atual Etiópia. O interesse português em
firmar uma aliança com este monarca enquadrava-se no projeto de combater os
muçulmanos que dominavam as rotas terrestres do Oriente e o comércio com o
Índico. Em 1540, tropas invasoras muçulmanas chefiadas pelo general Ahmad bin
Ibrahim el-Ghazi (Granhe, O Canhoto,
entre os portugueses) varreram o território com sucessivas campanhas militares,
comprometendo seriamente a sobrevivência deste reino cristão. Foi assim que o
monarca da Abissínia pediu ajuda a D. João III, tendo este ordenado ao
governador da Índia que enviasse uma força expedicionária ao rei abexim. Entre
1541 e 1543, D. Cristóvão da Gama, filho mais novo de Vasco da Gama, liderou um
corpo de 400 tropas portuguesas, travando batalhas contra milhares de homens,
missão que hoje nos pareceria de gente louca. Embora este herói tenha perecido
dramaticamente num desses prélios, a verdade é que estes quatrocentos homens
(episódio que traz à memória os 300 espartanos liderados por Leónidas que
enfrentaram o numeroso exército persa) evitaram o colapso iminente, venceram
duas batalhas, restauraram a liberdade e ajudaram o exército etíope a expulsar,
do seu território, os muçulmanos.
O relato apaixonante desta aventura chegou-nos por Miguel
de Castanhoso, um dos cinco capitães da companhia, intitulado História das cousas que o mui esforçado
capitão Dom Cristóvão fez nos reinos do Preste João com quatrocentos
portugueses que levou consigo, impresso em 1563.
Toda a atuação de D. Cristóvão é a de um capitão-soldado,
ainda que só possamos selecionar aqui algumas passagens. No decurso da primeira
batalha, o narrador apresenta-nos uma referência a epipolesis. Durante o combate, o capitão andou sempre de um lado
para o outro a esforçar a sua gente, expondo-se aos maiores perigos. Tanto
assim foi que um tiro de arcabuz o atingiu na perna, que foi causa de tristeza
para todos, menos para ele, pois foi motivo de honra, porque assim contrariava
tudo o que as histórias antigas e modernas diziam acerca de outros capitães.
Este comentário do narrador ilustra bem a grandeza de ânimo do capitão sobre os
congéneres (cap. XV):
Em este tempo Dom Cristóvão andava esforçando a gente e pondo-se sempre em os mores perigos,
sendo muitos dos nossos feridos. Foi ele ferido de um arcabuz por uma perna,
que foi para nós outros grande tristeza e para ele honra, pois que, assi
ferido, se havia de amostrar e fazer o
que em histórias antigas e modernas não se acha que nenhum excelente capitão
fizesse.
Assim dava exemplo enquanto capitão. Mas não descurou o
ofício de soldado, pois no final da batalha, ele próprio, por sua mão, curou os
feridos, substituindo o cirurgião. Só depois de tratar de todos, se curou a si
mesmo. Isto é cristão sem deixar de ser grandioso: Este Dia levou Dom Cristóvão muito trabalho, porque curou todos os
feridos por sua mão, por o cirurgião que com nós ia estar ferido em a mão
direita. E, depois deles curados, se curou a si por derradeiro.
Na terceira batalha, depois de um combate de artilharia à
distância, ele foi o primeiro soldado com outros cinquenta a pelejar com cem
turcos, nos quais andou matando e ferindo, até que foi de novo ferido numa
perna (cap. XIX):
E assi se fez,
sendo ele o primeiro com cinquenta soldados de lanças e arcabuzes, contra
obra de cem turcos que daquela parte pelejavam, e deu neles e os fez retirar um
bom pedaço, matando e ferindo muitos, e tornou-se a recolher, porque carregaram
ali a maior força dos mouros; e, ao recolher, lhe mataram quatro homens, e os
mais vieram todos feridos, e Dom Cristóvão ferido de uma espingardada por uma
perna.
A batalha prosseguiu e o capitão, embora ferido, andou
passando em revista todas as tropas ao mesmo tempo que as esforçava (referência
a epipolesis). Ou seja, trata-se de
uma epipolesis proferida no meio de
um combate, tipo de alocução que denuncia a máxima inter-relação entre o
capitão-soldado e a heroicidade, pois aqui se manifesta, em toda a sua
plenitude, o comportamento valoroso de D. Cristóvão. Aliás é o próprio narrador
a afirmar que é nestes dias que se conhece a valentia e a vocação dos capitães.
Na verdade, não tem palavras nem as conhece para cabalmente dar conta de tanto
esforço:
E Dom Cristóvão, assi ferido, andava visitando nossas
estâncias e esforçando a gente, porque estes são os dias que os capitães são
conhecidos para quanto são. Não sei palavras com que diga seu esforço nem as
há.
Na construção do caráter deste herói, sobressaem as
virtudes de capitão, de soldado e também de cristão, pois não só combatia os
inimigos da Fé, como se igualava em condição aos mais baixos da categoria
militar, pensando-lhes as feridas. Que falta para completar a grandiosidade do
retrato de D. Cristóvão?
Já tivemos ocasião de estabelecer aqui o paralelo entre
estes portugueses e os 300 de Esparta e, por extensão, entre o jovem capitão
português (27 anos) e Leónidas. Ora, este herói grego, cercado pelos persas,
teve um fim brutal, pois foi decapitado. Regressando ao século XVI, nesta
última batalha, os portugueses eram já poucos e feridos, de maneira que,
reconhecendo que era inútil continuar a lutar, se recolheram então a uma serra.
Os mouros foram no seu encalço, até que os descobriram, a D. Cristóvão e aos
restantes companheiros. Logo o prenderam e conduziram à tenda do seu rei, a
qual tinha como ornamento de entrada, oitenta cabeças de soldados portugueses,
trazidas diligentemente pelos muçulmanos em troca de generosa recompensa.
Como se deve prever, o tratamento a que foi submetido foi
amplamente doloroso. O narrador conta dramaticamente as torturas a que foi
sujeito, não deixando o leitor indiferente. De facto, estamos diante da
descrição de um martírio, cujas semelhanças com a morte de Cristo são
evidentes. Depois de lhe ter mostrado as cabeças dos companheiros, o rei
ordenou que o despissem e o manietassem, para depois ser desafogadamente
açoitado. Deram-lhe ainda bofetadas; das suas barbas fizeram candeias e não
deixaram de lhe arrancar pestanas e sobrancelhas. Depois, como Cristo, sofreu o
escárnio e o opróbrio dos restantes capitães, uma vez que o fizeram desfilar
por todas as tendas dos capitães, para refrigério do rei. Tudo sofreu com
paciência, dando graças a Deus: A Dom
Cristóvão foram feitas muitas injúrias, as quais ele sofria com muita
paciência, dando muitas graças a Deus pelo trazer a tal estado depois de ter
conquistado cem léguas aos Cristãos.
Tal como Leónidas, tal como S. João Baptista, D.
Cristóvão foi decapitado (cap. XX):
E,
como se desenfadaram com ele, tornaram-no à tenda de el-Rei, o qual com sua
própria mão lhe cortou a cabeça, não se havendo por satisfeito de lha mandar
cortar. E naquele próprio lugar onde lha cortaram se abriu uma fonte de água,
que depois diziam que sarava muitas doenças.
O martírio de D. Cristóvão tem assomos de santidade, pois
no local da morte nasceu uma fonte de água que é sinal de vida, do mesmo modo
que em outros lugares, a grande distância, diz o narrador, sucederam outras
coisas maravilhosas.
Tristão Vaz da Veiga é também um capitão-soldado, mas
agora em desempenho marítimo. Com efeito, a descrição e a imagética
subjacentes, conduzem o leitor para a assimilação de Tristão no exercício desse
papel heróico. Tristão da Veiga era o capitão da fortaleza de Malaca, quando
esta sofreu um rude cerco por parte dos turcos em 1568. Jorge de Lemos publica
em 1585 a história do cerco. Assim, logo que a armada portuguesa se apercebeu
da frota turca, Tristão da Veiga abandonou a sua nau e meteu-se numa galeota
para ordenar e animar os soldados (epipolesis).
Diz o narrador, que o capitão tomou esta decisão, para que os soldados o vissem
como companheiro e pelejassem mais confiados. E o que vem a seguir é a melhor
definição da historiografia portuguesa do ideal do capitão-soldado e que
mereceria figurar num florilégio militar.
Assim, Tristão da Veiga não queria ser apenas um capitão,
ordenando tudo a partir da sua nau, mas desejava ser também soldado, pelejando
numa galeota de espada na mão. O narrador explica o propósito retórico
subjacente de tal atitude: com efeito, diz o narrador, que aproveitaria aos
soldados terem um valente capitão, mas encerrado no alto da sua torre
(metáfora), se não o vissem com os olhos
no raso (ao nível) dos remos das suas pequenas embarcações (imagem). Este texto
é magnífico, expõe de um modo transparente o significado do ideal do
capitão-soldado:
E levando-se em rompendo a manhã, navegou para o rio
Formoso, que está doze léguas de Malaca, por lhe afirmarem as espias, que
estava nele a armada inimiga. Tanto que a descobriu, viu assomar a dianteira
dela, que seria de vinte e tantos navios ligeiros. E deixando a Manuel Ferreira
por capitão da sua nau, se meteu em uma
galeota, das que consigo levava, para ordenar a sua armada e animar os
soldados, para que, vendo-o a si, tão companheiro como cada qual, dos que
cada um deles tinha para remédio peculiar do trabalho que lhes sobreviesse,
pelejassem mais confiados; e pricipalmente para lhes dar a entender, visto como
dependurados de seu bom ou mau semblante, que não era tão espantoso o inimigo,
como se em Malaca pintava, pois queria achar-se com eles, não só como seu capitão-mor, mandando de sua nau, senão também como
soldado, pelejando numa galeota com a espada na mão. Porque, à verdade, em
perigo tão claro e manifesto, pouco
montaria terem estes soldados capitão-mor animoso, metido na torre de uma nau,
se não o vissem com os olhos no raso dos navios de remo […]. Entendendo o
capitão-mor Tristão Vaz, pelo muito curso que tinha da guerra, que na
determinação sua estava o temor dos inimigos, e na dúvida, confiança, lembrou
aos capitães e soldados suas obrigações, e os exortou, persuadiu e moveu à
peleja, e alvoraçando-os com o provérbio muito trilhado entre eles, que «aos
ousados favoreciam e ajudavam prodigamente os Fados», se fez logo na volta
deles, com as velas a topetar.[32]
E foi assim que durante a batalha naval, Tristão da
Veiga, incansavelmente, sempre pelejou junto dos soldados, animando-os com as
suas palavras e com o seu exemplo.
Uma das mais elaboradas, do ponto de vista literário,
caracterizações de um capitão-soldado da literatura portuguesa é-nos facultada
por Luís de Camões n’Os Lusíadas. D.
João I aparece-nos descrito à maneira homérica, fazendo relembrar o
comportamento heróico de Agamémnon.
No decurso da batalha de Aljubarrota, D. João, como
capitão que de tudo se apercebia, sentiu que o seu Condestável estava em grande
aperto. Este é o momento para o poeta, subitamente, introduzir um símile,
comparando o comportamento do rei com o de uma brava e fera leoa, que, enquanto
procurava alimento, deixara sós os filhos no ninho. Nesse entretanto, sentindo
que o pastor de Massília se preparava para lhe furtar as crias,
desesperadamente corre raivosa, e freme,
e com bramidos (aliteração da vibrante para mostrar o ruído) atroa os
montes sete Irmãos (Norte de África). De igual modo, D. João, em auxílio,
acorre com outros à primeira ala:
Sentio Ioane a afronta que passava
Nuno, que como sabio capitão,
Tudo corria, e via, e a todos dava
Com presença e palavras coração:
Qual parida Lioa fera e brava
Que os filhos que no ninho sós estão
Sentio, que em quanto pasto lhe buscava,
O pastor de Massilia lhos furtara.
Corre raivosa, e freme, e com bramidos
Os montes sete Irmãos atroa e abala,
Tal Ioane com outros escolhidos,
Dos seus, correndo acode aa primeira ala:
E como capitão, exorta os combatentes à valentia,
convocando-os a seguirem o seu exemplo de guerreiro, o primeiro a desafiar as lanças
e as setas dos inimigos:
Vedes me aqui, Rey vosso, e companheiro
Que entre as lanças e setas, e os arneses
Dos inimigos corro, e vou primeiro
Pelejay verdadeiros Portugueses.
Ou seja, ainda que não deixando de ser capitão, assume
também o papel de soldado. Em seguida, tal como Agamémnon na Ilíada (V.533), depois de ter proferido
a exortação, o rei atira uma lança contra os inimigos e logo alguns dão o último
suspiro:
Isto disse o magnanimo guerreyro
E sopesando a lança quatro vezes,
Com força tira e deste unico tiro
Muytos lançarão o ultimo sospiro.[33]
Repare-se que D. João é apresentado inicialmente como
capitão, mas, à medida que o episódio se vai desenrolando, o rei vai-se
despojando do papel de capitão, para envergar o papel e as atitudes de um
guerreiro, manejando, no final, as armas. Em toda a sua plenitude, temos a
descrição de um capitão-soldado, com matizes homéricas.
Para o final, deixamos, propositadamente, uma perspetiva
diferente da figura do capitão-soldado. Em 1575 foi impresso em Roma um
florilégio poético de diversos autores portugueses sobre as recentes vitórias
alcançadas por D. Luís de Ataíde em Goa e Chaul (1570-71), intitulado DIVERSORVM AVCTORVM CARMINA/ IN LAVDEM
ILLVSTRISS1MI DOMINI LVDOVICI ATHAIDII.[34] Conta com a participação de
André de Resende, Inácio de Morais e Pedro Sanches. O poema de André de Resende
propõe-se cantar os feitos de D. Luís de Ataíde, seguindo, como o próprio metro
sugere, os ditames da poesia épica. A narrativa ocupa, pois, lugar de relevo.
Relatam-se os sucessos de Goa: o cerco posto pelo Hidalcão, o ataque lançado de
surpresa pelo vice-rei, a atrocidade do combate, a vitória dos sitiados, a
retirada do inimigo, a chegada de D. António de Noronha, o prémio da vitória
distribuído por D. Luís aos seus soldados (vv: 27-98).
Entre os episódios narrados avulta aquele em que à falta
de despojos, o vice-rei obrigou os seus soldados a aceitarem, como recompensas
de guerra, os bens da sua própria casa, exemplo, portanto, de desprendimento de
bens materiais, de probidade e de honestidade. Na arenga que profere aos
soldados, depois de estes, num primeiro momento, terem recusado ultrajar a casa
do seu capitão, o vice-rei insiste no mesmo desejo, dizendo-lhes que em breve o
seu mandato chegaria ao fim e seria apenas um soldado, tal como eles (vv:
90-97):
Ducis reuerentia cunctos
Mouerat. Elatis dextris, ac murmure claro,
Velle negant temerare domum. «Dux impero dixit,
Post paulo iam miles
ero, tamen impedit ipsa
Si uos
relligio ac pietas, age sumite nostra
Donatiua manu». Singillatimque uocatis
Quanta ea cumque fuit.
A solicitude do general a todos comovera.
Levantaram as mãos e de voz embargada claramente disseram
que
não queriam ultrajar a tua casa. «Por pouco tempo detenho o comando,»
respondeste, «dentro
em breve serei apenas soldado, todavia se
é mesmo
religião e o respeito que vos detém, vamos, tomai-a como
nossos
donativos». E,
chamando um a um, distribuíste-os por grandes
que eles fosse.
Neste caso, a menção ao ideal do capitão-soldado serve
para enfatizar o desprezo das riquezas de D. Luís, assumindo-se este como o
traço dominante na caracterização do vice-rei. A glória advém desse desapego em
relação aos bens materiais e da aceitação da humildade.
3. Conclusão
As páginas da historiografia portuguesa estão juncadas de
descrições de batalhas, envoltas de um maior ou menor grau de dramatização, de
patetismo ou de reminiscências épicas (ekphrasis
conhecida e assimilada por muitos historiadores), destinadas a emularem os seus
protagonistas e a comoverem os consequentes leitores. Não raras vezes, do meio
dessas descrições, emergem figuras cunhadas de heroísmo, cujas palavras e
ações, bem como as referências diretas, feitas pelos narradores, permitem
reconhecer que estamos diante do ideal do general-soldado, figura que remonta à
épica homérica.
A entrada em cena do general-soldado, ou do
capitão-soldado da literatura portuguesa, segue um guião bem estabelecido:
cumprindo as suas funções de líder militar, quer nos preliminares, quer durante
a batalha, o capitão irrompe por entre os soldados, proferindo uma ou várias
exortações, procurando avivar nas tropas a disposição para a luta. Em seguida,
qual soldado, arrebatando de um escudo ou de uma lança, é o primeiro a arrostar
com o inimigo, ato que tem por objeto arrastar os soldados duvidosos para o
combate.
De todos os tipos de arengas, geralmente é a epipolesis que é proferida nestas
circunstâncias, desde logo porque é um discurso, salvo excepções, autorizado
apenas aos capitães. Por outro lado, a epipolesis
apresenta características de realização muito particulares (levadas a cabo a
pé, a cavalo ou a bordo de uma pequena embarcação) que se enquadram perfeitamente
na descrição geral da batalha, que é dramática e impressiva, destinada a
comover os leitores. Finalmente, como cúpula desta identificação, o conteúdo
argumentativo de cariz predominantemente parenético enquadra-se eficazmente na
finalidade caracterizadora da exemplaridade do capitão-soldado, fechando-se
assim as descrições de batalhas, heroicas e moralizantes, que dominam muitas
das páginas da historiografia e épicas portuguesas quinhentistas.
Luis Miguel Ferreira Henriques
Instituto Politécnico Portalegre
luduvicus.m@gmail.com
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[1] Cf. Liv. 7.32: Tum
etiam intueri, cuius ductu auspicioque ineunda pugna sit, utrum,
qui audiendus dumtaxat magnificus adhortator sit, verbis tantum ferox, operum
militarium expers, an qui et ipse tela tractare, procedere ante signa, versari
media in mole pugnae sciat. Facta mea, non dicta, vos, milites, sequi volo; nec
disciplinam modo, sed exemplum etiam a me petere, qui hac dextra mihi tres
consulatus, summamque laudem peperi.
[2] Cf. Wheeler
(1991: 126-7).
[3] Cf. Carmona
(2014: 219).
[4] Cf. Dodge
(2009:53).
[5] Cf. Carmona (2008: 412-415).
[6] Cf. Pitcher (2007: 120).
[7] Sobre a
importância da epipolesis na literatura
greco-romana, cf. Carmona (2008),
(2014).
[8] Cf. Iglesias-Zoido (2008: 20)
[9] Cf. Iglesias-Zoido (ed.) (2008).
[10] Castanheda, História do Descobrimento…, Liv. II, Cap. XXV.
[11] Castanheda, História do Descobrimento…, Liv. II, Cap.
XXVI.
[12] Cf. Monteiro (1989, Vol. I).
[13] Castanheda, História do Descobrimento…, Liv. II, Cap. LXXX.
[14] Barros, Década I da Ásia, Liv. II, Cap. VIII.
[15] Gaspar Correia, Lendas…, Tomo I, Segundo anno do visorey Dom Francisco. Armada de
Tristão da Cunha. Anno de 1506, Cap. XVII.
[16] Diogo do Couto, Década VI da Ásia, Liv. IV, Cap. V.
[17] Diogo do Couto, Década VI da Ásia, Liv. III, Cap. III.
[18] Diogo do Couto, Década VI da Ásia, Liv. II, Cap. I.
[19] Diogo do Couto, Década VI da Ásia, Liv. IV, Cap. V.
[20] Diogo do Couto, Década VI da Ásia, Liv. V, Cap. I.
[21] Diogo do Couto, Década VI da Ásia, Liv. V, Cap. II.
[22] Damião de Góis, Diensis nobilissimae Carminae…, 71.
[23] Diogo de Teive, Commentarius…, 10.
[24] Diogo de Teive, Commentarius…, 17-18.
[25] Diogo de Teive, Commentarius…, 48.
[26] Jerónimo Corte Real, Sucesso…, Canto XIII.
[27] Jerónimo Corte Real, Sucesso…, Canto IX.
[28] Diogo de Teive, Commentarius de Rebus…, 88.
[29] Jerónimo Corte Real, Sucesso…, Canto XVIII.
[30] Diogo de Teive, Commentarius…, 89.
[31] D. João de Castro (1500-1548) teria à data 46
anos.
[32] Jorge de Lemos, História dos cercos de Malaca. Cap. IX.
[33] Camões, Os
Lusíadas, Canto IV, 36-39.
[34] Cf. Pereira
(1991: 48 e ss).