Reseña/Review

Cláudia do Amparo Afonso Teixeira

 

Ida Gilda Mastrorosa (ed.), Attualizare il passato. Percorsi della cultura moderna europea fra storiografia e saperi degli antichi (Le botte di Diogene. Studi di Storia e Diritto, nº 2), Lecce: Pensa Multimedia Editore, 2020, pp. 387

[ISBN 9788867607457]

 



 

 

 


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presente livro congrega os textos de um conjunto de especialistas que analisam a receção e atualização dos textos historiográficos, ou de conteúdo histórico, operada pelos autores da primeira Idade Moderna. Como o título indica, trata-se de um livro centrado no domínio da receção dos textos clássicos, em particular dos textos historiográficos e biográficos, que indaga não apenas a presença de temas, motivos e estruturas de influxo clássico em obras produzidas no recorte temporal balizado pelos séculos XV a XVII, mas sobretudo os mecanismos atualizantes a que foram sujeitos, de forma a aferir os processos culturais que mediaram essa receção e determinaram a seleção, a interpretação e a atualização de estruturas temáticas e textuais. É, com efeito, deste esforço de cariz metodológico, assumido e várias vezes reiterado por Ida Gilda Mastrorosa na Introdução (“Oltre ‘riscoperte’, Nachleben e ‘fortuna’: considerazioni introduttive”, pp. 9-22), que resulta uma das mais importantes mais-valias do volume. De uma forma geral, todos os capítulos associam ao labor de identificação e de análise de estruturas e tipologias textuais um processo interpretativo ditado pelo signo da(s) ‘reelaboração(ões)’ e das circunstâncias que a(s) determinaram e cuja amplitude abarca, entre outros, ‘estados de cultura’, motivações autorais, circunstâncias epocais e a própria utilidade dos textos para a legitimação programática de acontecimentos histórico-políticos contemporâneos. Neste sentido, o livro coordenado por Ida Mastrorosa oferece-nos um conjunto de visões centradas no processo de receção, reelaboração e atualização, trinómio no qual se cruzam fenómenos múltiplos que traduzem a incorporação de sensibilidades e problemas do presente.

A primeira parte do volume (“Archetipi Antichi”) inclui dois estudos. Leone Porciani, autor de “La parola orale. Erodoto e la costruzione del discorso politico” (pp. 23-44), trata a materialização na historiografia herodotiana de conceitos político-filosóficos cuja referencialidade se situa no presente histórico coevo e que, portanto, testemunham uma atualização do próprio passado historiografado. Ao serviço desta análise, o diálogo herodotiano entre Sólon e Creso e o discurso de Xerxes em Heródoto VII. 8.1 servem de ponto de partida para o cotejo com o célebre epitáfio de Péricles em Tucídides; se, no primeiro caso, o contraste entre as posições relativas ao conceito de autarkeia (Sólon nega a sua possibilidade; Péricles, pelo contrário, afirma-a) constituem reflexo das tendências que alimentaram o debate político e a evolução da própria pólis a partir da era de Péricles, no segundo caso, a definição do conceito de nómos autoriza a conclusão de que Heródoto projeta sobre o império persa que descreve o “modelo de linguagem auto-representativo do império” ateniense.

O segundo texto, da autoria de Mario Lentano, L’eredità di Serse. Suasoria retorica e discorso storiografico a Roma” (pp. 45-66), discute o papel das escolas de retórica e, em particular, da suasoria, no panorama intelectual do império romano, pondo em relevo o papel que este tipo de exercício, sobretudo de tema histórico-político, desempenhou na criação de ‘delenlaces alternativos’ para os grandes acontecimentos e para os agentes históricos e, por conseguinte, para a criação de uma ‘história contra-factual’, mediada pela desconstrução da realidade transmitida pela historiografia e pelos discursos oficiais.

A segunda parte (“Interpreti e Modelli”) inicia-se com o estudo de Susanna Gambino Longo, que assina “Erodoto nel Rinascimiento: dalla reabilitazione a un nuovo modello storiografico” (pp. 67-90). A autora, partindo das indagações petrarquianas sobre a incompatibilidade entre expressão poética e narração histórica, equaciona e analisa a forma como o conceito de ‘veracidade’, e as consequentes tensões metodológicas operadas pela divisão entre fábula e verdade, foi equacionado pelos autores humanistas, percorrendo uma vasta literatura, que parte das chamadas ‘defesas de Heródoto’ e se amplia ao contexto da receção de Heródoto como modelo adequado a uma época simultaneamente de descoberta de novos mundos e atravessado pelas tensões vividas entre europeus e otomanos.

Juan Carlos Iglesias-Zoido, autor de “La actualización’ de los discursos de Tucídides en las antologías renacentistas de contiones: los argumenta del epitafio (2.35-46)” (pp. 91-122), explora o contexto da receção de Tucídides no Renascimento, elencando os paradoxos que ditaram a distinta fortuna dos erga e dos logoi. A hegemonização das leituras retóricas da Guerra do Peloponeso, plasmadas, entre outras, nas antologias de contiones produzidas no Renascimento que permitiam a leitura independente dos discursos, veem-se ainda reforçadas pela introdução de elementos paratextuais, que condicionavam ainda mais essa leitura, em ajuste aos objetivos traçados pelos antologistas para as suas obras. A confirmação deste pressuposto oferece-no-la o autor na última parte do seu capítulo, ao analisar o epitáfio de Péricles nas contiones de Nannini, Belleforest e Stephanus, estabelecendo o argumento da ‘releitura programática’ e, por conseguinte, atualizante do texto tucididiano.

Anne Raffarin, autora de “D’un antiquaire à l’autre: Varron source et modèle de Flavio Biondo” (pp. 123-148), trata a importância de Varrão para o estabelecimento de um conhecimento sistémico sobre a Antiguidade no Renascimento. Depois de interrogar a noção de ‘antiquário’, a autora centra-se na relação entre Varrão em Biondo e no espaço em que, entre um e o outro autor, se implanta uma memória escrita. Permeada por outras receções (nomeadamente as de Agostinho e Macróbio), a reconstrução de Biondo, alimentada não apenas por fontes literárias, mas também arqueológicas, tem em vista o cotejo entre duas construções, a de Roma antiga e a da Roma coeva, nas quais se articula uma complexa relação entre paganismo e cristianismo.

Paolo Ponzù Donato, em “Interpretazione, divulgazione, attualità: Pier Candido Decembrio volgaizzatore di Cesare” (pp. 147-172), oferece-nos uma leitura sobre a forma como a recomposição decembriana dos textos do corpus Caesaris demonstra um ajustamento simultâneo ao labor de vulgarização, ditado pela necessidade de oferecer um texto compreensível para o leitor contemporâneo não especializado, e à atualização de teor programático, diretamente indexada às tensões da política contemporânea, protagonizadas pelas rivalidades políticas entre as repúblicas italianas. Conceptualmente entendida como speculum, a História forneceria, no entender de Decembrio, não apenas um modelo de orientação capaz de dirimir a aleatoriedade imposta pela fortuna, como se constitui também, por meio dos seus exempla, como modelo de ação política, militar, diplomática e estratégica (especialmente dirigido a Filippo Maria Visconti, duque de Milão).

Ida Gilda Mastrorosa, que assina “Livio e Machiavelli fra passato e presente: tendenze demagogiche, aspirazioni tiranniche e strumenti di tutela della ‘riputazione’” (pp. 173-214), analisa as narrativas livianas sobre Espúrio Cássio, Espúrio Mélio e M. Capitolino, exemplificativas dos mecanismos associados às derivas autocráticas, que Maquiavel recupera nos Discursos sobre a Primeira Década. A capacidade das instituições da República romana e do seu corpo cívico de se constituírem como elementos limitadores da adfectatio regni é ideologicamente recuperada por Maquiavel para a realidade florentina, para a qual postula uma ética civil constrangedora da busca absoluta do poder.

Andrea Severi, “Dalla Roma imperiale alla Bologna principesca: la vocazione attualizzante del commento beroaldiano a Suetonio” (pp. 215-248), traz à colação as circunstâncias da produção do comentário Beroaldino de Suetónio, expondo as relações de circunstância que se estabelecem entre a (re)leitura de textos clássicos e política contemporânea. Neste sentido, Severi explora o texto de Beroaldo no contexto da tradição dos specula Principis, interpretando os nexos digressivo-encomiásticos, que desenvolvem sucessivas correlações entre figuras da História romana com os membros da família Bentivoglio, e a justaposição entre particularismos de Roma antiga, colhidos de Suetónio, e da Bolonha contemporânea, como elementos de natureza propagandística.

Lucie Claire, que assina “Sur quelques évolutions des commentaires aux Annales de Tacite dans les années 1580: Lipse, Muret, Pasquali, Scotti” (pp. 249-278), centra-se nas tensões interpretativas entre a primeira receção de Tácito, dominada por uma perspetiva histórico-filológica (de que o comentário de Lípsio é modelo) e a releitura política que se imporia posteriormente e que viria a alterar o propósito do comentário e o próprio ‘género’. A autora analisa os elementos programáticos desenvolvidos nos prefácios e o capítulo 11 do livro I nos comentários de Annales dos quatro autores, para estabelecer o percurso interpretativo dessa evolução politizante, que germina em Scotti e Muret, para aparecer consolidado em Pasquali.

A terceira parte, intitulada “Laboratori Florentini”, integra dois textos. “L’historien en son laboratoire: Leonardo Bruni Aretino (ca. 1370-1444) et le travail sur les sources antiques” (pp. 279-312), da autoria de Laurence Bernard-Pradelle, traz à colação, de um ponto de vista analítico e metodológico, a correlação que na vasta produção de Leonardo Bruni (nomeadamente, nas biografias, comentários e obras históricas) é mantida entre acontecimentos da História antiga, colhidos em fontes clássicas, e História coeva. O autor põe em relevo os modelos cognitivos e as complexas relações dialógicas que se estabelecem entre passado e presente que contribuem para a dotação de sentido aos eventos da cadeia histórica, temporalmente separados, mas concebidos por Bruni em interligação interpretativa.

O segundo texto, intitulado “The Memory of the Ancients in the Florentine Genre of epistole e dicerie” (pp. 313-352), da autoria de Victoria Pineda, centra-se nos problemas metodológicos que se impõem à caracterização das antologias de epistole et dicere. A autora propõe uma análise integrada destas antologias, discutindo os aspetos que sustentam, e dificultam, uma definição orgânica destas antologias (e.g., tipologia, ‘mobilidade’ de conteúdo, falta de homogeneidade da seleção e da estruturação, contextos de produção e público-alvo), centrando-se, na segunda parte do capítulo, na presença dos autores clássicos nestas antologias e nas motivações das seleções autorais e textuais.

Umberto Roberto assina as Conclusões (“‘Attualizzare il passato’: alcune riflessioni sulla rilettura dei testi antichi tra l’età tardoantica e l’Europa del Rinascimento”, passando em revista os contributos da 1a e da 2a parte do volume e estabelecendo nexos de sentido entre eles, chamando a atenção para os modelos cognitivos da interpretação do passado que o volume, no seu conjunto, oferece ao leitor.

Em suma, e de uma perspetiva global, o volume editado por Ida Gilda Mastrorosa constitui um contributo indispensável para a compreensão dos percursos atualizantes desenvolvidos por um conjunto dos mais importantes humanistas dos séculos XV a XVII e que clarifica o poliedrismo dos percursos intelectuais suscitados pela receção dos textos clássicos. Neste sentido, trata-se de uma obra fundamental, não só pela qualidade dos vários textos que a compõem, mas também pela complexidade das análises que, no seu conjunto, conformam a ideia de que a receção do passado greco-latino se fez por meio de uma pluralidade de sistemas que, a cada momento, estabeleceram novos horizontes de leitura, sem deixarem de restaurar a memória repatriante dos clássicos.

 

 

Cláudia do Amparo Afonso Teixeira

Universidade de Évora /

Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos

da Universidade de Coimbra